terça-feira, 30 de setembro de 2008

O CIRCO

Artistas de circo em tela de Georges Seurat


O globo da morte, a motocicleta voadora, os trapezistas, a dançarina sobre o cavalo, os palhaços, os pernas de pau, tudo ofuscado pela janela por onde se podia ver o cadáver de pescoço perfurado por peixeira afiada. A trupe circense sem máscaras, sem fantasias soluçava a perda da atriz principal, mulher do dono do circo. Depois da longa noite de velório nunca mais se ouviu falar deles.

“Hoje tem espetáculo? Tem sim senhor! Às seis horas da noite? Tem sim senhor!
E o palhaço o que é, é ladrão de mulher?”

A tarde que prometia ser de festa terminou mais cedo quando o menino foi devorado pelo leão diante do pai. Os animais sumiram dos picadeiros enquanto durou a comoção popular.
Não dá para esquecer o circo de Niterói que pegou fogo num domingo festivo.

Morte e circo não combinam.

Prefiro transportar-me ao momento feliz em que fui com meu pai, há tanto tempo atrás, pela primeira vez desvendar o mistério, o colorido, a alegria esfuziante da lona armada na Rua da Mangueira.
Somente um homem e uma menina de vestido domingueiro a devorar com olhos abismados o espetáculo inesquecível tantas vezes sonhado.




Conceição Pazzola
30/9/2008

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

AMIGO DE PENAS


Foto Arthur Grosset



Poderia ter sido uma manhã como todas as outras não fosse a visita inesperada.

Primeiro cantou no alto das árvores para chamar atenção, como costumava fazer quando Giovanni vivia.

Pé ante pé para não assustá-lo aproximei-me da janela, o nosso visitante de penas negras e papo amarelo pousara no jambeiro que o meu marido plantou defronte a casa.

Balançou o bico de um lado a outro, gorjeou baixinho antes de voar para a grade e nela se acomodar, onde cantou novamente.

Senti os olhos se encherem de lágrimas, o pássaro do qual nem o nome sei esperava pelo assobio que não veio. Na cadeira de seu amigo não havia ninguém.

Contive a emoção ao vê-lo entrar no terraço e pousar no encosto de uma das cadeiras. Foi só um instante, abriu asas e sumiu entre as folhas do quintal.

Os pássaros podem ser amigos fiéis.


Conceição Pazzola

25/9/2008

domingo, 21 de setembro de 2008

A Entrada é Franca


Pierre Auguste Renoir, Mulher com Sombrinha





Quantas crianças desvalidas
Moram anônimas nas esquinas
Em lares serenos dos bem-de-vida
Dormem meninos de melhor sina.

No meio de tiroteio assustador
É a polícia atrás de assaltantes
Passageiros da hora de horror
O fugitivo sentou ao volante

Tudo acontece em segundos
No carro crianças gritam Pai!
Mil balas passam de raspão
Socorra a menina meu rapaz

Escurece a noite sobre a calçada
Choraram todos policia e ladrão
Sangra a pequena a vida é nada

Os anjos não precisam de alfaiate
Vão para o céu com asas brancas
Na vida vadia não corra ou mate
Vá ao paraíso, a entrada é franca.

Conceição Pazzola
Olinda 29/8/2008.

sábado, 13 de setembro de 2008

PESADELO


Foto Felipe Pazzola (Rio Branco/Acre)




À luz do dia chegou diante da casa.
De novo viu a praça, a rua estreita e pouco movimentada.
Estacou na calçada fronteira, ao seu lado Alice esperava. A maquiagem barata dissimulava o cansaço de mil noites mal dormidas.
Uma eternidade depois arriscou perscrutando dentro de seus olhos:
- Vamos?
Não havia paredes descascadas, grades pesadas e negras janelas iguais àquelas. Paralisada diante da casa soturna tremeu da cabeça aos pés e as lembranças da noite de pesadelo a possuíram. Os sussurros obscenos, os seus próprios gritos. Apertou as têmporas latejantes inutilmente.
Como se adivinhasse Alice pegou o seu braço, apertou-o com força, obrigou-a a voltar à terra:
- Fiz o que querias. Mas não vejo razão, acho loucura. É melhor irmos embora. Quem vai acreditar?
Do outro lado, parado diante da casa o vigia em seu uniforme desbotado continuava a fuzilar as duas mulheres com olhar rancoroso e cheio de sono.
Corina sentiu frio penetrante nas entranhas, a coragem que a movera até ali desapareceu. Desejou estar em seu quarto, a porta trancada para ninguém ver as lágrimas jorrarem incontroláveis, que agora ameaçavam saltar ali mesmo naquela rua sombria em plena luz do sol de meio-dia.
Viu as gotas de suor ameaçarem escorrer o pó do rosto de Alice.
- O que vai adiantar? Estou com fome, vamos embora – a voz saiu da boca mascarada, passou raspando sem atingi-la.
Continuou hipnotizada, pregada ao solo, a cena da noite mais viva do que nunca a destruí-la por dentro, o olhar preso na negra janela, o terror voltando aos borbotões.
A vista escureceu, de novo era noite. Gritava e ninguém respondia.
Debatia-se, de novo as mãos grosseiras e ela tão nua. Mergulhou no túnel sem volta e deslizou em queda vertiginosa. As pernas dobraram lentamente.
As pancadas na janela a fizeram abrir-se de par em par. Emoldurou o rosto pálido de uma mulher, a aparição tangeu o pesadelo.
Voltou à realidade, o sol brilhava e Alice com seu rosto borrado impaciente.
Ah, precisava fugir depressa, da casa de paredes descascadas, da praça deserta, do monstro de voz aterrorizante.
- Vamos embora, Alice.
Assustou-se com a própria voz, apressou os passos e a amiga teve dificuldade para acompanhá-la.


Conceição Pazzola
Olinda, 7/9/2008



segunda-feira, 8 de setembro de 2008

SEM VOCÊ










Foto: Cezanne, Árvores no Jaz de Bouffan.




É sempre assim
Quando a tarde cai
Ele vem devagarinho
Como quem não quer nada

Vem sem ser chamado
Leva o calor esconde o sol
Protegido atrás das nuvens
É hora e vez do intruso frio
No corpo, na alma solitária

Vazios estão meus braços
Nesse grande mundo frio
Gelados ossos arrepiados pêlos
De quem ainda não percebeu
O vazio e o desmantelo

Chega mansinho, vem devagar
Como quem não quer nada
Devolve ondas calorosas
Quando a noite se avizinha

Aparece envolto em luar
Deixa-me
aconchegada
Esquecida de fraqueza, dou
Olhares suplicantes à lua

Entre nuvens sombrias
É só miragem, é mentira
Doce embora efêmera
Antes que sumas

Aninhada em teu colo
No meio da noite escura
Nem a lua me responde
Onde estás agora

É sempre assim
Quando a noite vem
E a ventania murmura
Despeço-me
Dos belos dias de verão

Até quando devo agüentar
O longo inverno sem te ver
Sem meias nos pés a esperar

Ouvidos atentos aos barulhos
Do vento que sopra e traz
Embalos dementes do amanhecer
Sozinha e sem você.

Conceição Pazzola

12/7/2008



quarta-feira, 3 de setembro de 2008

CANSEI DE TI


Olha aí mundo cansei de ti
Mais sozinho do que pixote
Aparento e não sou menino
Vago canhestro na má sorte

Sou solidão em tarde quente
Folha seca de vida matreira
Fervura e revolta na mente
Tomo pancada levo rasteira

Olha aí mundo cansei de ti
Filho sem pai inconsciente
Pensando bem sou zumbi

Tenho nada na vida vazada
Lambo chão de cão vira lata
Mais um cheira cola ignorado
Tampo e destampo matraca

Passo pelo tempo passo ausente
Bata no menino não é um homem
Tranco no peito o sangue quente
Morrerei bandido sou lobisomem.

Conceição Pazzola
12/8/2007