quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

VISITANTE NATALINO

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Sem nenhum sapatinho na janela
Coloridas luzes e sem o Papai Noel
Pelos becos e ladeiras de favelas
Não chegam milagres lá do céu.

Antiga e perene miséria nordestina
É tristonha e envergonha a cidade
Tão antiga é a morte vida Severina
Salta aos olhos tamanha crueldade

Nas favelas pouco tem pra se viver
Quanto é grande a pobreza do lugar
Sem a fé ninguém sente ninguém vê
Quando a estrela o Natal anunciar

Se Ele prometeu voltar um dia
No final dos tempos há de chegar
Enquanto houver mês de dezembro
Muitas vezes ainda nos visitará

Nos inúmeros casebres nordestinos
Ainda persiste a grande esperança
Na estrela de nosso Deus Menino
Que traz alegria e a bonança.






Conceição Pazzola
Olinda, 23-12-2000.


DESEJO



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Quero teu sorriso feliz só para mim
O mundo inteiro sumido por instantes
Quero te ouvir sussurrar baixinho assim
Amo-te. E perder de vez teu ar pedante

Quero a perdição eterna de teu olhar
Ardência no peito cheio de lágrimas
Reaver tua presença e reter
Na minha, tua mão e tua alma

Quero voltar ao mundo cor-de-rosa
A vida liberta de qualquer enigma
Viajar contigo nesse paradigma
Sentir teu cheiro e ser venturosa

O tempo soprou para bem longe
Tuas juras de amor em lábios frios
Só eu te enxergava como anjo
Minhas lágrimas hoje rolam no vazio

Conceição Pazzola


Olinda, 07/06/2007

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

CLARA

Capa do livro CLARA
SINOPSE
Desde a chegada, embora procurasse minimizar os primeiros momentos, Marisa continuava a pensar neles. O doloroso reencontro com a filha a quem abandonara, há mais de dez anos atrás, despertara emoção quase incontrolável. O primeiro impulso foi dar-lhe as costas e fugir, como fizera antes. Com Eugênio encontrara o prazer de existir, aprendera o verdadeiro significado do amor, readquirira tranquilidade e confiança no futuro. Ele a ensinara a ser feliz, parecia adivinhar seus menores desejos.
Nunca poderia esquecer o intenso mal-estar ao reencontrar a filha. Com muita dificuldade, controlou o desejo de tomá-la nos braços. Em turbilhão, dolorosas lembranças a fustigaram quando a covardia a induzira a deixá-la.
Tentara abafar durante todos aqueles anos os brados de sua consciência, fantasiando-a muito feliz, sob os cuidados de Joca, talvez de nova mãe.
Santana trouxera a menina para cumprimentá-los e os grandes olhos azuis os fitaram. De imediato, Eugênio adivinhara a verdade: era a filha de Joca. Estava viva, órfã e precisava de ajuda.

Capítulo I

O CRIME


Cercado de planaltos e rara vegetação, o balneário de Pedra Linda sobrevive basicamente de seus dias ensolarados, dos passeios marítimos na praia de espumas brancas, brisa suave, água tépida transparente e da pesca.
Próximo às célebres colinas, corre sem pressa o rio manso cercado de extenso mangue, reserva natural aonde os aventureiros mais afoitos tentam pescar crustáceo o ano inteiro. Muitos desistem no meio da empreitada, depois de serem alertados pelo faroleiro ou flagrados pela incansável patrulha de guarda costeira.
Na belíssima orla, persistem casebres da antiga colônia habitados por humildes pescadores, em contraste aos numerosos bangalôs e sobrados, ocupados pelos veranistas. Todos os anos, na temporada de verão, a praia enche-se de turistas vindos de todas as partes. A miscelânea de cores exibidas pelos barracões de artesanato local patrocinado pela prefeitura, encanta os recém-chegados desde quando chegam. As excursões incluem as colinas inspiradoras do novo nome do lugar; ao vê-las pela primeira vez, a maioria se encanta, mesmo sob a forte luz do sol afirma reconhecer contornos femininos docemente reclinados nos abrolhos.
Desde quando Santana a trouxera para viver no sobrado, todos os nativos sabiam de Clara. Em suas idas e vindas ao armazém do vilarejo, sempre lhe pedem notícias da menina órfã. Nenhum deles parece capaz de prejudicá-la, apesar disso, a governanta continua cheia de cuidados, temerosa de que o criminoso volte à antiga colônia de pescadores onde a menina viveu com o pai e acabe por descobrir o seu paradeiro.
Ela assistiu ao assassinato; apesar de tantos anos transcorridos, a qualquer momento pode recobrar o juízo para reconhecê-lo.
Depois de perder a segunda mulher e o filho que ela esperava, por falta de opção Joca a levava consigo quando ia pescar. Nos fins de tarde o ajudava a vender pelas ruas. Antes de alcançarem a palhoça onde moravam, Clara fazia-lhe companhia no boteco, e nos encontros com os amigos para o último bate-papo e uns tragos. Enquanto durava a farra dos homens, sentada no tamborete ela esperava, paciente e quieta. Naquela tarde, ao notar a menina, um jovem fardado e cambaleante aproximou-se do balcão para assediá-la:
- Vem comigo, boneca. Quero te mostrar um bocado de coisas bonitas.
De costas, o pai continuava a animada conversa de todos os dias, que se arrastava enquanto houvessem ouvidos atentos e trocados para a bebida. Puxou-lhe a camisa, aflita, ele virou-se. Ao ver a mão que a segurava pelo braço ordenou, zangado:
- Largue a menina, cachorro.
- Calma aí, velhote. Fui eu quem a viu primeiro – respondeu o jovem marujo com um sorriso sarcástico.
Fora de si, Joca atirou-se sobre o intruso. Rápido, este sacou de um punhal. Ao ver a arma, ela começou a gritar, assustada, enquanto os dois engalfinhavam-se. A briga provocou grande tumulto, despencaram cadeiras e mesas, vidros quebraram; os mais sóbrios trataram de correr para a porta de saída. Dali a instantes, no boteco restou somente o ferido e a filha em soluços:
- Levanta pai, vamos embora...
Ele reuniu as últimas forças e suplicou:
- Depressa, fuja, Clara! Vá para casa.
Tinha doze anos e depois da trágica tarde, passou a perambular sem rumo, a viver da caridade alheia. As mulheres e crianças da colônia a protegiam e alimentavam. Alheia a tudo, por muitos dias a menina de olhar vago permaneceu no ancoradouro até o anoitecer, à espera do barco que não chegava. Ninguém tinha coragem de contradizê-la quando a ouvia repetir a mesma ladainha: - Pai não voltou hoje...
Os meses correram. Devagar, o crime passou ao rol do esquecimento, os antigos companheiros de pescaria retornaram à rotina de antes, como se nada houvesse acontecido. O assunto perdeu interesse, ninguém mais o mencionava. De madrugada, os barcos seguiam para o alto-mar, de onde regressavam no dia seguinte ou semanas depois, quando obtinham sucesso nas pescarias. Pontualmente ela os esperava na beira da praia, os cabelos desgrenhados e o olhar carregado de expectativa. Os homens rudes fingiam indiferença, sem tempo para consolá-la.
Calejados pelas próprias agruras, embora penalizados eles continuavam suas tarefas como se a menina compusesse a paisagem. Alvo de olhares assustados e curiosos em seus passeios solitários, a maioria a enxotava ou zombava de seus modos estranhos.
Alguns lhe ofereciam comida, até o dia em que Santana condoeu-se e decidiu tomá-la aos seus cuidados. Precisava de companhia e ajudantes na antiga residência de veraneio dos Marcolino, que raramente apareciam, desde o casamento de Eugênio com Marisa.
Pedra Linda trazia-lhes incômodas lembranças, preferiam passar os cálidos meses de verão em sua fazenda. Sozinha no comando, a governanta continuou a cuidar do casarão com o mesmo desvelo do tempo em que os filhos dos Marcolino eram pequenos; todos a tratavam como se fosse parente.
Clara fazia parte de um episódio doloroso nunca plenamente esclarecido. Por razões óbvias, ninguém conseguia esquecê-lo.

Na visão de Antero Marcolino o sobrado da colina foi um verdadeiro achado. Há muito procurava por um lugar como aquele, tranquilo, de clima privilegiado, para atender aos conselhos dos médicos de sua esposa Rosana, de saúde frágil e temperamento difícil.
A família precisava de novos ares. Os banhos de mar e de sol trouxeram novo ânimo à sua mulher, rarearam as cenas de ciúmes quando ele precisava seguir viagem para cuidar dos negócios e das fazendas.
No casarão da fazenda, nasceram Eugênio e a pequena Fabíola, delicada como sua mãe. Como seria de esperar, os filhos trouxeram maior estabilidade ao casal. Com a filha nos braços, Antero sentia-se feliz e realizado, conseguia enfrentar as crises de mau humor e as implicâncias da esposa.
A pressa de voltar ao balneário o tornava dinâmico, impetuoso, resolvia todas as pendências para regressar mais depressa, com muitos presentes e convidados, acompanhados por suas esposas e filhos, para alegria de Eugênio e Fabíola. A praia enchia-se de novos turistas e o sobrado, de festas e muitas luzes.

Capítulo II

TRIO PERFEITO

Enquanto prosseguia a reforma do sobrado, por uns tempos os Marcolino foram alojar-se na Hospedaria de Joaquim Álvares, o bom lusitano. Logo Antero e Quincas descobriram grandes afinidades, e quando as noites chegavam, eles se juntavam às animadas rodas de carteado ou de xadrez formadas pelos hóspedes. Concediam às respectivas mulheres a chance de trocarem confidências sobre os respectivos casamentos, os filhos e os problemas domésticos.
Joaquim orgulhava-se de sua origem modesta; deixara o velho mundo com a mulher e o filhinho, determinado a vencer no ramo de hotelaria no país do futuro. O acaso mostrou-lhe nas belezas naturais do então lugarejo a almejada chance para construir sua pousada. Cercou-a de palhoças visando os menos afortunados. Poucos anos bastaram para transformá-la numa hospedaria de muitos quartos. Quando os hóspedes acostumaram-se a voltar a cada novo verão, o sonho cresceu; haveria de possuir o melhor hotel da praia com amplo salão, refeitório e muito conforto para atrair mais visitantes ao balneário.
Sua esposa Sílvia comandava tudo, desde o cardápio à limpeza dos quartos. Por essa razão, raramente fazia-lhes companhia nos animados luaus à beira-mar. Simpático, bem humorado, Joaquim ocupava-se em distrair a todos. Em tom espirituoso, narrava suas peripécias para driblar os contratempos dos meses chuvosos sem hóspedes, compensados na chegada de agosto, quando o frenesi de reservas se repetia.
Concluída a reforma do casarão, a família Marcolino pôde ocupá-lo. A amizade entre os dois empresários permaneceu sólida. Mal voltava de viagem, Antero surgia na hospedaria, feliz por reencontrá-lo e à família, não raramente em companhia de um novo amigo, desejoso de conhecer o bom lusitano. O exemplo de seus pais foi seguido por Joca e Eugênio. Apesar de temperamentos diversos tornaram-se amigos, iam juntos à escola e raramente brigavam até conhecerem Marisa.
Impulsionados por motivos semelhantes aos da família Marcolino, os Siqueira mudaram-se para o balneário. Aconselhada pelos médicos a mudar de ares, Lígia alugara o bangalô à beira-mar onde passou a viver em companhia da filha, enquanto o marido Ricardo continuou a trabalhar em importante seguradora na Capital e aparecia somente nos fins de semana. A menina ressentia-se com a ausência do pai; mostrava-se retraída na escola. Indiferente ao rebuliço dos colegas, preferia isolar-se durante a recreação e na hora de saída. Mal os portões se abriam, ao reconhecer Lígia, desaparecia dentro do veículo. Curioso, Joca a observava à distância e confidenciava para Eugênio:
- Lá vai a Senhorita de Nariz Empinado.
No íntimo, este compreendia bem os motivos da nova colega. Sonhava compartilhar de sua solidão, sem correr ou pular de um lado a outro, atrás de Joca ou de todos os demais. Desde o primeiro instante aquele olhar desolado o atraíra. Guardou no íntimo o que sentia e continuou a adorá-la de longe, até o amigo encontrar o pretexto tão esperado. Quando o caderno de Marisa escorregou do colo, Joca precipitou-se para devolvê-lo:
- Tome, nem chegou a sujar-se. Meu nome é José Carlos, mas, todos me conhecem por Joca e este é o meu amigo Eugênio. E você, como se chama?
De caráter introspectivo, Eugênio deveu ao amigo a aproximação àquela criatura linda e enigmática. Antes arredia, desconfiada, Marisa rendeu-se à perseverança e bom humor de José Carlos, aprendeu a compartilhar de seus gracejos no recreio e intervalos de aulas da Escola Montessoriana, do município vizinho onde estudavam. Logo o trio se tornou inseparável.
Pela facilidade em criar situações para estarem juntos, Joca conseguiu assegurar a amizade. Tornou-se o curinga, formaram o trio perfeito.
Durante a adolescência desconfiou da indisfarçável afeição de Eugênio por Marisa, e divertia-se em provocá-lo monopolizando atenções com tiradas espirituosas. Consciente de suas limitações, o amigo se tornava cada vez mais retraído.
A saúde plenamente recuperada, Lígia desprezava as súplicas da filha adolescente, ansiosa por continuar os estudos na Capital e reatar os vínculos com amigos ali deixados.
Lígia habituara-se ao confortável e sossegado veraneio no bangalô. Entretanto, quando Ricardo podia visitá-las nos fins de semana ela o crivava de interrogatórios, queria detalhes sobre a vida solitária do marido. Bem humorado, ele a satisfazia, porém em represália escasseava as visitas ao balneário. Os projetos e temores acalentados durante a longa ausência desapareciam por encanto ao vê-lo chegar.

Capítulo III

ACIDENTE

A vida continuou sem grandes mudanças ou novidades no vilarejo de Nossa Senhora dos Esquecidos, até o veículo dos pais de Joca cair no rio, atirado por uma carreta desgovernada.
O pequeno balneário entrou em polvorosa e não se falava em outra coisa. Debaixo de grande comoção, o duplo velório aconteceu no salão da hospedaria. Gente de todas as idades e classes sociais desfilou diante dos caixões lacrados por ordem de Joca, que pretendia manter a imagem dos pais do mesmo jeito de quando eram vivos.
Naquela tarde, vencidos pela insistência de Fabíola para estar com eles na hora da triste despedida, Antero e Rosana foram buscá-la, no colégio onde estudava na Capital. Comunicativa e quase adolescente, findos os primeiros anos de escola a filha continuava indecisa sobre a verdadeira vocação, e vez por outra precisaram transferi-la para outro colégio.
Praguejando contra o mau tempo, Antero reduziu a velocidade. Para piorar seu ânimo, na estrada escorregadia e perigosa o súbito temporal provocara desagradável engarrafamento e sua esposa Rosana observava o movimento da rodovia pela janela, temerosa que a lentidão do trânsito os impedisse de chegar a tempo para os enterros de Joaquim e Sílvia. Sob orientação dos guardas rodoviários, finalmente eles suspiraram aliviados e prosseguiram viagem.
Antes dos sepultamentos, José Carlos subiu a colina transfigurado, à procura do melhor amigo de seu pai.
Como toda família, Antero se preparava para cumprir a dolorosa obrigação. Ao abrir a porta, Santana deparou-se com a cabeleira desgrenhada pelo vento que uivava lá fora e o olhar esgazeado do jovem visitante. Sem palavras, fez menção de abraçá-lo. O semblante pálido, sombrio, Joca recuou e caminhou altivo pela sala:
- Por favor, preciso falar com o Senhor Marcolino. Pode chamá-lo?
Tristonho e desconcertado, Antero o recebeu no escritório onde tentou confortá-lo:
- Que surpresa vê-lo por aqui! Sei quanto deve estar difícil para você enfrentar tudo isso. Desde quando recebi a noticia, estou estupefato, destruído por dentro. E me pergunto a todo instante, como pôde acontecer uma coisa dessas, meu Deus? O seu pai me tratava como seu irmão, Joaquim e Sílvia eram nossos melhores amigos... – a voz embargada, calou-se.
Por alguns segundos os lábios do rapaz tremeram, com dificuldade controlou-se e redarguiu:
- Perdoe-me a rudeza, mas, não vim procurá-lo para falar sobre a morte deles. Passei a noite em claro, às voltas com mil dilemas. O pior de todos é que preciso de dinheiro para viver a minha vida. Terei de vender a hospedaria o quanto antes, e quero saber se o senhor está interessado. É a primeira pessoa a quem procuro, em caso negativo...
- O que você tenciona fazer? – interrompeu Antero, espantado com a ostensiva frieza de Joca.
- Entenda Senhor Marcolino, eu preciso resolver este assunto. Quero livrar-me o mais rápido possível daquele lugar. Está repleto de recordações que me fazem mal e quero aproveitar minha juventude, a venda da hospedaria é a única saída. Se o senhor estiver desinteressado, tudo bem, só me restará entregar tudo a uma corretora.
Acostumado a lidar com situações melindrosas, assim mesmo Antero surpreendeu-se, e para ganhar tempo observou o relógio. Controlou-se e respondeu:
- Perdoe-me por não haver entendido logo. Há tanto tempo vivo a cuidar dos negócios herdados de meus pais, estou surpreso. É claro, você pensa diferente. Cada um deve agir de acordo com os seus princípios – sem olhar o rapaz, acariciou por alguns instantes a barba rala e grisalha, antes de continuar:
- Para ser sincero, jamais me ocorreu a hipótese de lidar com hospedaria. Vou fazer o que me propõe em consideração a você, porque o compreendo e considero um fedelho muito especial, o melhor amigo de Eugênio – concluiu dominado pela emoção.
- Em resumo, vai comprá-la? – insistiu Joca, erguendo-se. Antero encarou-o por alguns instantes, levantou-se também, depois assentiu com a cabeça:
- Sim, fique tranquilo. Avise-me quando os papéis estiverem desembaraçados. Devo isso ao Quincas. Pensando melhor, deixe tudo por minha conta. Já estou habituado, entrego tudo aos advogados, logo que o cartório liberar toda papelada nós fecharemos o negócio.
Contrastante às lágrimas da maioria, durante os funerais José Carlos se manteve sereno; suportou os abraços e tapas no ombro com o semblante impassível.
Naquele momento, o jovem alegre, extrovertido, de aparência feliz havia desaparecido. Em seu lugar restou o homem irônico e amargurado, pronto a revidar com piadas sarcásticas aos bem intencionados, quando se aproximavam com gestos, conselhos e palavras de conforto. Determinou-se a esquecer todos os vestígios da tragédia que o tornara órfão nas mesas de jogos, em farras homéricas, e mulheres da chamada vida fácil.
Em poucos meses, dilapidou o patrimônio tão espinhosamente amealhado por seus pais. As noites perdidas na vida desregrada o ajudavam a não lembrar a triste realidade.
Em vão, Eugênio aproveitava cada oportunidade para chamá-lo à razão. Embora penalizado por ver o infortúnio desnorteá-lo, percebeu a perda de tempo e foi cuidar de correr atrás dos próprios sonhos. Precisava colocar em prática o plano de cursar a faculdade de administração na Capital, sempre adiado pelo receio de perder a mulher amada.
Tantas vezes projetara revelar-lhe o que sentia e não tivera coragem. Quando partisse, acalentava a secreta esperança de fazê-la compreender quanto poderiam ter sido felizes, ao sentir a sua falta.
A excessiva timidez acabou por facilitar o caminho para Joca.
Capítulo IV

REVELAÇÃO

Terminado o tempo de escola, os dias pareciam arrastar-se. Marisa não encontrava na figura melancólica de sua mãe, cada vez mais misteriosa e pouco comunicativa, a companhia de que precisava. Passava as manhãs na praia e as tardes na outrora aconchegante hospedaria dos Álvares, onde se divertia em companhia de Joca, a cada instante mais envolvente, mais adulador.
Forçado pela demorada burocracia do inventário dos bens, a contragosto ele continuou a ocupar um dos quartos. Compadecida, Marisa buscava maneiras de ajudá-lo a superar a grande perda. Refreava merecidas recriminações quando ele exalava o hálito de excessiva farra, e devagar fechava de novo a porta de seu quarto, regressando à casa decidida a tentar novamente no dia seguinte.
Desde quando estudavam na mesma escola, também Joca sonhava conquistar Marisa. As visitas frequentes logo desencadearam intimidades entre os dois difíceis de estancar.
Apreensivos, os pais a recriminavam por sua estreita amizade com o “doidivanas quase arruinado”, e consideravam a melhor solução afastá-la do balneário, na esperança de que a distância fosse o melhor remédio para esfriar o seu entusiasmo.
Marisa revidou, lembrando com uma ponta de ironia quanto insistira para voltar a viver na Capital, antes dos pais de Joca morrerem. Ninguém lhe dera ouvidos.
Desprezou as advertências, conselhos e súplicas, e continuou ao lado de Joca até descobrir a inesperada gravidez.
Debateu-se por dias e noites à procura de coragem para confessar a verdade à sua mãe. Naquela manhã quando a encontrou, recostada nos travesseiros com o livro entre as mãos e o olhar distante, pensativa, achou a ocasião oportuna e aproximou-se.
Ao ver a filha parada no meio do quarto, Lígia surpreendeu-se:
- O dia está lindo. Por que ainda está em casa? Sente alguma coisa?
- Pare de preocupar-se, mamãe, não estou doente – rebateu Marisa, enrubescendo – Precisamos conversar, onde está papai?
Constrangida, a mãe pigarreou:
- Tivemos outra discussão boba, saiu batendo portas. Deve ter voltado para a Capital.
Apesar de condoer-se com os sinais de pranto que ela tentava disfarçar, Marisa suspirou de alívio. Sozinhas poderiam entender-se melhor:
- Logo estará de volta. Ele sempre faz isso, não é mesmo? – consolou, sentando-se à beira da cama - Depois você me fala sobre o que aconteceu ontem, mãezinha. Agora, procure esquecer papai por um instante, por favor. Preste atenção, o que tenho para lhe contar é muito sério – arriscou, sem coragem de fitá-la.
- O que houve? Conte-me tudo – pressionou a mãe em tom aflito. Segurando-a pelos braços, percebeu assustada quanto estava trêmula.
- Estou esperando um filho de Joca – despejou Marisa – Passei muitas noites em claro antes de criar coragem para lhe contar. Por favor, mãe, você tem de ajudar-me – implorou.
Lígia deixou-se cair nos travesseiros, atônita. Começou a chorar baixinho, de vez em quando fungava com força. Pacientemente a filha esperou. Acostumara-se àquelas longas cenas de choro diante de grandes e pequenos problemas. Nessas ocasiões, desejava carregá-la nos braços como se faz com as crianças.
- Como vou enfrentar Ricardo? – lastimou-se a mãe entre soluços – Vai me acusar de relapsa, displicente... Temos de pensar depressa numa forma de corrigir o seu erro, antes que ele o descubra – propôs enxugando as lágrimas.
Ofendida, a filha ergueu-se:
- Se vai continuar a dizer bobagens prefiro não saber, está bem? – desafiou - Deixe tudo por minha conta. Enfrentarei o meu pai assim que ele chegar – decidiu.
- Ficou louca? – desesperou-se Lígia - Ele é capaz de matá-la quando souber.
Teve de esperar até o final do mês quando o pai regressou esfuziante. Entrou assobiando carregado de malas, retiradas de todos os armários da última casa onde haviam morado.
Estacionou a caminhonete defronte à porta e começou a transportá-las sem pedir ajuda. A esposa e a filha continuaram em seus lugares apenas observando o seu vai-e-vem. Finalmente caminhou até a mesa onde se encontravam, encarou-as e perguntou:
- E então, quais são as novidades, perderam a fala? Morreu mais alguém por aqui? Apareceu algum tubarão, algum navio fantasma, houve afogamentos? Estão com umas caras...
Com os nervos à flor da pele, a esposa limitou-se a tamborilar sobre a mesa. Marisa sorriu e apressou-se em abraçá-lo:
- Perguntas e mais perguntas, hein? Por que você ficou tanto tempo sem dar notícias, longe de nós?
– Tudo a seu tempo, mocinha – replicou Ricardo piscando um olho – Alguém aqui tem que trabalhar. Eis a razão de minha prolongada ausência. Satisfeita?
- Completamente – confirmou depressa Marisa, procurando disfarçar o medo, inquieta diante da euforia um pouco forçada de seu pai, possível prenúncio de tempestade. A voz de Lígia interrompeu o curso de seus pensamentos:
- Conte logo – incitou.
Aborrecido, o marido retrucou ainda abraçado à filha:
- Não estrague tudo, mulher. Seja lá o que for, deixe-me primeiro contar as novidades. Consegui novo inquilino para aquela nossa casa do centro e acreditem, já recebi três meses adiantados. Precisamos comemorar.
- Espere um pouco, pai – replicou a filha de olhos baixos e voz trêmula – Parabéns por haver alugado a casa, ela estava fechada há tanto tempo... – respirou fundo, armou-se de coragem e desabafou, atropelando as palavras:
– Mamãe tem razão, você precisa saber da grande novidade. Estou grávida.
Transtornado, Ricardo empalideceu. Lançou um olhar incrédulo para Lígia que mantinha os olhos pregados na toalha da mesa e avançou em direção à filha. Antes que ela pudesse defender-se ou correr, ergueu a mão e esbofeteou-a com força. Marisa deslizou devagarzinho para o chão com a imagem do rosto dele cinzento de fúria:
- Sua ordinária, não se atreva a chamar-me novamente de pai!

Capítulo V

REJEIÇÃO


Depois do nascimento de Clara, tantas vezes Joca implorou para ficar ao lado de Marisa, que terminou por convencê-la. Desocupou o quarto da hospedaria e mudou-se de vez para o bangalô dos Siqueira, que o acolheram contrafeitos. Naquele momento, consideraram a melhor atitude ceder à vontade de Marisa.
A paternidade trouxera para Joca bons presságios; estava em paz consigo mesmo e quase regenerado. Com a liberação do inventário, obtida pelo tabelião amigo de Antero, livrara-se de todos os cobradores.
Sua presença constante reacendeu a revolta dos Siqueira, transitoriamente aplacada ao se tornarem avós. Aproveitavam cada oportunidade para provocá-lo, acusando-o pela maternidade precoce da filha.
Decididos a lutar pelo que acreditavam a felicidade de Marisa, insistiam na mesma tecla, ela merecia futuro melhor. Na companhia daquele doidivanas quase arruinado, as esperanças de realizar os sonhos se tornavam cada vez mais remotas, e a revolta crescia diante dessa possibilidade.
A sua jovem, linda, inteligente menina devia abrir os olhos, dizia Lígia sem controlar o pranto. Se continuassem a morar juntos, carregada de problemas e de filhos, Marisa perderia a beleza e as oportunidades.
O rapaz era caso perdido. Quando regressassem à Capital, livre do intruso, ela poderia retomar os estudos ou realizar aquela tão sonhada viagem ao exterior. Ao regressar, mandaria buscar Clara.
A princípio, Marisa repeliu todas as advertências e conselhos, entretanto surpreendia-se a pensar sobre eles durante as noites mal dormidas, enquanto aguardava o regresso de Joca.
Quando menos esperava, esgotados todos os argumentos e ameaças, Ricardo e Lígia decidiram voltar a viver na Capital.
Ela se recusou a aceitar a atitude drástica de seus pais como definitiva. Esperou que se arrependessem, voltassem para continuar a viver sob o mesmo teto, mas, viu o tempo correr e nada.
O chão começou a fugir-lhe sob os pés, o que lhe reservava o futuro? Tentou adaptar-se à nova realidade; jovem demais e sozinha, os dias tornaram-se enfadonhos e iguais. Ao lado de Joca detestou a rotina e os compromissos, e as desavenças amiudaram-se. Sem explicações, ele se ausentava a semana inteira, reaparecia quando o dinheiro escasseava e sempre bêbado.
Cansada, infeliz, Marisa ansiou por um ombro amigo para confortá-la. Armou-se de coragem, foi ao sobrado na esperança de rever Eugênio. Santana a recebeu, as janelas e portas cerradas denunciaram o abandono.
Voltou desolada, sob a impressão de sentir o olhar reprovador de seu amigo. Desfeitas as ilusões de modificar a conduta destrutiva de Joca, decidiu convencer os pais a acolherem também sua filha. Não aguentava mais. Chorava constantemente, penalizada de si mesma.
Na Capital, Lígia consumia-se por tê-la deixado no balneário e procurava redimir-se, preparando a reconciliação entre Marisa e Ricardo. Para afogar a saudade, quase todo dia escreveu cartas, na última, repetiu a grande tristeza da separação, descreveu o sofrimento de seu pai, tão acabrunhado, arrependido por tê-la abandonado à própria sorte. Sonhava toda noite com o dia em que estariam juntos novamente, haveriam de planejar as belas etapas de sua merecida viagem ao exterior. Sem dúvida, o pai ansiava recebê-la. Atendesse aos apelos, por algum tempo entregasse a menina aos cuidados de Joca, no regresso da viagem poderiam voltar ao balneário para buscá-la.
Com um grito de surpresa, ao abrir o envelope caiu-lhe nas mãos o bilhete de passagem; viera dentro da carta. Marisa suspirou longamente. Inútil resistir mais, os pais logo saberiam de sua grande e definitiva decisão.
Naquela madrugada, ao voltar para casa, com indiferença Joca observou a mala atrás da porta. Completamente bêbado, chutou-a contra a parede por estar impedindo a passagem e atirou-se sobre a cama, sequer tirou os sapatos antes de adormecer.
Acordou no outro dia, sob a forte impressão de ter ouvido a noite inteira o desolado choro de Clara.
Nos meses seguintes, desvanecidas as esperanças de Marisa regressar, a criança e as dívidas cresceram. Os poucos trocados no bolso se mostravam insuficientes para apaziguar o choro da menina. Antes de cair em desespero, acudiu-lhe a lembrança do último aniversário, quando o pai o convidara a passearem na beira-mar. Ao chegarem à marina, Joaquim apontara em direção ao barco reluzente, no convés a vela tremulava no mastro:
- “O que me dizes, é bonito, José Carlos? Uma beleza, fala a verdade! É teu presente. Agora, vais poder velejar com tuas garotas por aí. Quem sabe, um dia tu conhecerás Lisboa e o Minho, meu filho?”.
Caminhou até lá, o coração confrangido e a mente povoada de lembranças felizes.
Se pudesse prever, naquela maldita manhã teria insistido para acompanhá-los. Dominado por intenso desejo de voltar o tempo, de olhos marejados chutou raivosamente com a ponta do sapato a primeira pedra do caminho, que ricocheteou na proa da embarcação. “Droga de vida!”, blasfemou em voz alta.
Joaquim lhe deixara a saída que procurava. Mudou-se para a Colônia de Pescadores, durante os dias e noites em que velejava entregava a filha aos cuidados de mulheres solteiras dispostas a cuidarem das crianças enquanto os pais pescavam. Entre elas, conheceu a doce Regina. Sem cobranças, sempre que precisava ela cuidava de Clara. Moça simples e carinhosa acabou por conquistá-lo, foi sua companheira até o parto prematuro, e levou consigo o filho que esperava.
Calejado por duras provas, os cabelos de Joca se tornaram grisalhos e a menina passou a fazer-lhe companhia até aquele dia fatídico.
Santana desconhecia pormenores do reencontro de Marisa e Eugênio. Acontecera durante a festa de formatura. Ao vê-la entrar, amparada no braço de Ricardo para os cumprimentos de praxe, ele pensou tratar-se de alucinação. E que encantadora visão, santo Deus.
Marisa aproximou-se deslumbrante em seu vestido negro. Como se nunca houvessem estado separados, retribuiu ao seu lindo sorriso tentando dissimular a surpresa. De longe, depois de observar a expressão radiosa do filho, Antero vibrou: “Deu certo!”, enviara-lhe o convite sem avisá-lo.
Depois de agradecer os cumprimentos, quando a moça descansou a mão em seu braço, Eugênio perguntou muito emocionado:
- Por que está aqui?
Antes de explicar, Marisa esperou o seu pai entreter-se com alguns amigos ali presentes:
- Voltamos a viver na Capital faz algum tempo. Vejo que ainda não sabia - de olhos baixos prosseguiu - Quando perdi a minha filha, sofri demais, foi muito difícil recuperar-me. Vivi no exterior até poucos dias atrás...
- Como deve ter sofrido! – lamentou Eugênio compadecido – Deixei de procurar notícias suas, sinto vergonha por ter me tornado tão mesquinho e egoísta.
Diante de seu revelador olhar de adoração, ela refreou o desejo de contar-lhe a verdade. Jamais compreenderia. Fora parcialmente sincera, sofrera demais até aprender a viver sem a menina. Agora se dava conta, muitas vezes havia surpreendido o ardor incontido em seu olhar, continuaria tolamente alheia?
Procurou a resposta nos murmúrios e nos olhares invejosos de outras mulheres em torno deles. Mostrou-se mais envolvente. Eugênio pronunciava palavras de conforto enquanto os seus olhos traíam a satisfação por tê-la novamente tão próxima.
Reatados os antigos laços, esquecida a passageira e infeliz relação com o ex-amigo comum, eles passaram a encontrar-se todos os dias. Evitavam falar do passado. O rapaz prometeu a si mesmo afugentar a persistente melancolia de seu rosto. Foram ao teatro, visitaram exposições e museus, nos longos passeios antes solitários ela o acompanhava.
Prazerosamente Eugênio servia-lhe de cicerone; alegre, sedutor e paciente. Logo descobriram que haviam sido feitos um para o outro. Marisa aceitou o convite para acompanhá-lo no primeiro fim de semana à fazenda, e sob as bênçãos de Antero, Eugênio confessou sua antiga paixão, pediu-lhe para aceitá-lo como esposo.
Agora esperavam um filho e chegariam a qualquer momento ao lugar onde haviam se conhecido.
Santana perguntava-se como explicaria a presença de Clara no sobrado sem remexer na velha ferida. De que forma lhes contaria a dolorosa verdade sobre a morte de Joca?
VI Capítulo

CLARA


O céu cor de chumbo parecia querer desabar a qualquer momento. Da terra desprendia-se aragem quente, sufocante, e um clarão riscou entre as nuvens carregadas prenunciando estouro de trovão. Indiferente aos sinais de tempestade, a figura solitária continuou sentada sobre os rochedos, segurando o anzol mergulhado nas águas agitadas do mar traiçoeiro, violento, que se esbatia nas suas pernas e ameaçava arrastá-la.
A estranha criatura teimava contra a força da natureza, as calças esfarrapadas, a blusa agarrada ao corpo encharcado. Para completar, forte aguaceiro caiu-lhe sobre a cabeça. Desnorteada, ergueu o rosto para o céu de nuvens carregadas e um grito raivoso escapou-lhe do peito franzino.
Tentou erguer-se, perdeu o equilíbrio, arrastou-se de quatro para longe do perigo. Ao ver-se a salvo e longe das pedras pontiagudas, brotou-lhe inesperada a gargalhada rouca. De braços abertos, começou a correr pela praia sem preocupar-se mais com o anzol por que lutara.
A forte ventania encrespava o mar, levantava areia. A pescadora continuou a correr debaixo do temporal até sentir-se esgotada pelo cansaço. Extenuada, atirou-se na areia molhada. Ali, o barulho das ondas chegava esmorecido enquanto a chuva continuava a fustigá-la.
Entre os sucessivos clarões de relâmpagos e estouros de trovões, ouviu um chamado longínquo. Vivamente ergueu-se para escutar melhor, à espreita, os olhos brilhantes. Começou a tremer violentamente. Logo, o grito repetiu-se e pelo declive do caminho o homem afundava as botas na areia enquanto segurava uma lanterna, lutando contra a força do vento e da chuva.
Protegido pelo capote, aproximou-se, iluminou-lhe o rosto. Os grandes olhos azuis piscaram ofuscados. Mansamente Eugênio implorou:
- Vamos para casa, Clara. Finalmente consegui encontrar-te.
Depois de relutar por instantes, a estranha criatura levantou-se, alisou o rosto com as palmas das mãos, sem nada responder. Eugênio voltou-lhe as costas e recomeçou a caminhada para o sobrado. Ela o seguiu enquanto o mar rugia encapelado e relâmpagos cortavam a escuridão; de vez em quando trovões quebravam o silêncio. Durante o percurso, Eugênio se manteve silencioso para não assustá-la; era preciso assegurar-lhe confiança.
Previu desde o primeiro momento o quanto seria espinhosa a luta, se quisesse de fato ajudá-la a reencontrar-se, a recuperar a sanidade perdida. Movido por sentimentos de compaixão e grande parcela de remorso, por ter deixado o melhor amigo e a mulher que amava quando mais poderiam precisar de ajuda. Quisera viver apenas a sua vida, e quem sabe, fora-lhe providencial que a menina solitária estivesse ali, viesse ao seu encontro no sobrado. Estaria redimido se pudesse devolvê-la à realidade.
Desde a chegada, embora procurasse minimizar os primeiros momentos, Marisa continuava a pensar neles. O doloroso reencontro com a filha a quem abandonara há mais de dez anos atrás despertara- lhe emoção quase incontrolável. O primeiro impulso foi dar-lhe as costas e fugir, como fizera antes.
Com Eugênio encontrara o prazer de existir, aprendera o verdadeiro significado do amor, readquirira tranquilidade e confiança no futuro. Ele a ensinara a ser feliz; parecia adivinhar seus menores desejos.
Nunca poderia esquecer o intenso mal-estar ao reencontrar a filha. Com muita dificuldade, controlou o desejo de tomá-la nos braços. Em turbilhão, dolorosas lembranças a fustigaram quando a covardia a induzira a deixá-la.
Tentara abafar durante todos aqueles anos os brados de sua consciência, fantasiando-a muito feliz sob os cuidados de Joca, talvez de nova mãe.
Santana trouxera a menina para cumprimentá-los e os grandes olhos azuis os fitaram. De imediato, Eugênio adivinhara a verdade: era a filha de Joca, estava viva, órfã e precisava de ajuda.
Indiferente, a mocinha de rosto atormentado continuara a encarar os dois recém-chegados com intensa curiosidade, até Santana admoestá-la:
- Pronto. Agora, suba, Clara. Você precisa abrir as janelas para arejar seu quarto. Vamos deixá-los descansar. Eles fizeram longa viagem, vou ajudá-los com a bagagem.
Como se nada tivesse ouvido, ela continuou parada. Sem olhar a esposa, Eugênio resolveu tomar a iniciativa:
- Trouxemos algumas malas pequenas. Venha comigo, Clara. Ajude-me a carregá-las - convidou.
A partir daquele momento, a menina passou a segui-lo por toda parte com olhar de adoração. Ao se recolherem, mais tarde, sem outra saída Marisa confessou a verdadeira versão e os motivos por que a abandonara. Ao invés de recriminá-la, amorosamente Eugênio acolheu-a nos braços, ajudou-a a enxugar as lágrimas e sentir-se menos culpada. Eles haveriam de proporcionar à Clara os cuidados e o amor de que precisava.
Surgira um novo dia. A brisa soprava mansamente e as ondas vinham quebrar-se na areia. No céu de azul puríssimo, da tempestade, nem vestígios. No barco entre os escolhos, o homem de pele bronzeada preparava a vela para navegar e aparentava trinta anos, os olhos quase fechados possuíam cor indefinida, ora esverdeados, ora castanhos. O queixo terminava numa dobra suave e tinha o nariz bem afilado.
Sob a camiseta de malha riscada, o tórax rijo denunciava o seu gosto pela vida ao ar livre. Depois de içada a vela, agachou-se para empurrar a embarcação até o mar. Antes de embarcar, segurou a proa com os pés e examinou, preocupado, o caminho além da praia que levava à colônia de pescadores. As rugas da testa desfizeram-se e leve sorriso iluminou-lhe a face: avistara a mulher e as duas crianças.
Marisa deixara-se ficar para trás com o filho nos braços enquanto observava a mocinha caminhar à sua frente, entretida na procura de conchinhas coloridas. Eugênio suspirou aliviado:
- Conseguiste trazê-la! - comemorou - Vamos, dá-me o menino. Faremos um belo passeio - enquanto falava, tomou a criança nos braços. Ela esfriou o seu entusiasmo:
- Espera, prefiro ficar.
- Por que mudaste de ideia? – estranhou – Tínhamos concordado em passar a manhã no barco com as crianças.
- Isso foi ontem. Quando acordei, já tinhas vindo para cá. Enquanto passeias, pretendo ir ao hotel. Além do mais, nosso filho ainda é tão pequeno! Talvez devamos esperar mais um pouco, antes de levá-lo conosco no barco – explicou - Esqueceste o pedido de teu pai? Prometemos ir até lá para conhecer o novo administrador.
- Por que não visitamos o hotel depois de voltarmos do passeio? – sugeriu com um sorriso persuasivo, embora notasse a determinação de seu olhar. Suspeitava da verdadeira razão por que Marisa mudara de plano; no íntimo, ela receava a companhia e a presença de Clara.
Esta correra para o barco, o rosto transbordante de alegria. Sua blusa de mangas esvoaçantes dificultava-lhe os movimentos. Nervosamente arregaçou-as, antes de subir a bordo com desembaraço.
Apesar dos andrajos, tinha o porte atraente e o andar cheio de encantos; seria uma lindeza com aqueles cabelos negros muito curtos, encaracolados em suave moldura às faces delicadas onde o azul dos olhos sobressaía. O nariz pequeno e sardento, a boca de lábios carnudos destoavam do conjunto.
Eugênio voltou-se para Marisa e disse em tom adulador:
- Parece-me ver-te...
Ela rebateu falsamente amuada:
- Estás enganado. Ela não parece comigo nem um pouco. Observa melhor: não vês que é o retrato de Dona Sílvia?
Ao compreender que falavam a seu respeito, desapareceu o ar de alheamento no rosto de Clara. Desembarcou impetuosa, fez menção de correr. Ágil, Eugênio barrou-lhe os passos, segurando-lhe o braço com firmeza:
- Por que mudou de ideia? Vai perder esse delicioso passeio no barco em nossa companhia? - perguntou-lhe em voz baixa.
Clara tentou desvencilhar-se, contrariada:
- Largue o meu braço! – exaltou-se.
Compadecido, Eugênio insistiu enquanto ela se debatia:
- Por que devo livrar-te? Para onde queres ir, Clara?
- Não estás vendo que é inútil? Se ela prefere estar só, deixa que se vá - interveio Marisa desdenhosa - Podem até pensar que a estamos maltratando. Solte-a.
Quando se calou, percebeu com um calafrio o seu olhar de rancor. Súbito, tomada de fúria incontrolável, Clara pulou sobre ela para arranhá-la e dar-lhe pontapés. Atordoado, Eugênio soltou por instantes o menino e teve dificuldade em separá-las. Clara estava incontrolável e transfigurada.
Atraídos pelos gritos, os banhistas limitaram-se a observar a cena, estupefatos. Finalmente Eugênio conseguiu conter a agressora. A respiração arfante, o rosto e o colo arranhados, em pranto, Marisa ergueu Luciano nos braços e sem olhar para trás, fugiu apressadamente para o sobrado enquanto ele se esforçava para controlar a fúria de Clara.
- Por que fizeste isso? - perguntou-lhe perplexo.
Ela continuou a debater-se para desvencilhar-se, tentava mordê-lo e arranhá-lo ainda exaltada. Largou-a inesperadamente. Clara perdeu o equilíbrio; sentada na areia, berrou:
- Vá embora!
Quais os tormentos suportados por esta pobre criança, quantos ainda teria de sofrer antes de recuperar a razão? Condoeu-se Eugênio. Depois daquele rompante inesperado, a intenção de um passeio pacífico e feliz naquela manhã esvaiu-se.
Conflitante e cada vez mais difícil seria a vida em comum sob o mesmo teto. Teriam de repensar o plano de desfrutarem todo verão no balneário até o casamento de Fabíola.

Recolheu a vela e considerou-se vencido. Atenderia ao apelo de sua mulher. Visitariam o hotel, em seguida descansariam em casa. Em nome do inesquecível amigo, envidaria todos os esforços até descobrir os meios de ajudar aquela coitada. Como animal acuado, Clara continuou imóvel, espreitando-o, as faces ruborizadas depois do esforço da luta.
Sim, o sonho de Joaquim Álvares tornara-se realidade. Com o seu tino comercial, Antero transformara a antiga hospedaria no moderno Hotel Marcolino.
Fora o estímulo que Fabíola esperava; revelou-se exímia administradora. À aproximação do dia de seu casamento, tentava conciliar o trabalho no hotel ao convívio com o seu noivo, gerente na fazenda.
Quanto mais se avizinhava o final de ano, assoberbada pelos preparativos, Fabíola consumia-se à iminência de seguir em viagem de núpcias. Porque o prometido substituto tardava, ela tentava conter os gestos ásperos, a impaciência. Enquanto isso, cauteloso como de hábito, depois de alguns meses em minuciosa procura, Antero afinal escolhera o novo administrador.
Estivera sempre tão próximo, não seria outro, senão o sogro de Eugênio. Ricardo Siqueira acabara de desligar-se da seguradora. Contratou-o em surdina, queria surpreender o filho e a nora durante o veraneio em Pedra Linda. Divertiu-se ao instá-los a visitarem o hotel.
VII Capítulo

EXPECTATIVA


Enquanto se aproximava do sobrado, Eugênio observava as paredes desbotadas e as grades corroídas pela maresia. Pediam reparos, antes de abrigar a grande festa de casamento de Fabíola. Como de hábito, antes de realizá-los pediria aprovação de seu pai.
Ao vê-lo, Santana acorreu:
- Antes que me pergunte pelos dois, Marisa e Luciano já almoçaram, estão na rede, lá no terraço. Contou-me do incidente, deixei-a desabafar até que se acalmasse. A pobre menina não age por maldade. Venha, o almoço está servido.
- Onde ela está? – indagou, enquanto se dirigia para a sala de refeições.
Como em resposta, encontrou-a debruçada sobre o prato. À sua entrada, imperturbável, Clara continuou a mastigar em silêncio. Eugênio sentou-se, cauteloso, procurou ignorá-la. Afinal, já haviam experimentado agitação suficiente naquela manhã. Terminada a refeição, Clara segurou o prato e caminhou para a cozinha como se carregasse pesado fardo. No meio do caminho, mudou de ideia e sentou-se novamente; esquecera de saborear a sobremesa. Eugênio achou engraçado, era ainda uma criança.
Naquela tarde, eles confiaram o menino a Santana e foram ao hotel onde Fabíola se desdobrava para transferir o comando, antes de seu casamento com o capataz Tomé. Interrompeu o que estivera fazendo e pulou radiante ao pescoço de seu irmão. A poucos passos, paciente e jocoso, o novo administrador recém-contratado os observava.
Marisa deixou escapar um grito de surpresa ao reconhecer o pai. Impetuosa, correu ao seu encontro. Fabíola os convidou a percorrerem as novas dependências do hotel; aqui e ali, eles retribuíram aos cumprimentos de hóspedes. A noite se aproximava, era hora de voltar ao sobrado.
Deixaram a caminhonete no hotel e começaram a caminhada de mãos dadas pela orla semideserta. A maré baixa espalhara muito sargaço na praia e o frescor da brisa batia em seus rostos. Inteiramente absorta, remexendo na areia, eles avistaram Clara.
Cautelosamente, aproximaram- se. Tencionavam descobrir o que a ocupava: fizera uma cavidade na areia úmida, logo se enchera d’água e nela debatia-se pequeno polvo. O rosto compenetrado, Clara parecia divertir-se. Com um graveto martirizava o molusco, até perceber que a observavam. Bruscamente, agarrou-se às pernas do rapaz, atirando-o ao chão. Pego de surpresa, Eugênio caiu, encarou-a assustado. Às gargalhadas, a menina escapuliu em disparada pela praia.
- Agora compreendes por que precisamos ir embora depressa? Ela é muito agressiva – queixou-se Marisa - Ninguém pode prever os seus atos, estou apavorada – completou, enquanto a observava ganhar distância.
Cada vez parecia-lhe mais improvável aproximar-se ou conquistá-la. Eugênio ergueu-se sacudindo o pó da roupa com as mãos:
- Sei que tens razão – ponderou - Mas, não podemos, não devemos abandoná-la à própria sorte, como esteve até bem pouco tempo. Precisamos, é nossa obrigação fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para ajudá-la. Planejo procurar bons psicanalistas, alimento esperança que serão capazes de curá-la.
- Tens o coração de ouro, é por isso que te amo tanto - disse-lhe aduladora. Beijaram-se com ardor.
- Deixa-me cuidar de tudo! - pediu-lhe - Ainda é tão jovem, há de recuperar-se. A cada instante, convenço-me de quanto já estimo esta menina, é como se fosse nossa filha. Haveremos de ganhar sua confiança, com persistência e grande dose de paciência, hás de ver – acrescentou Eugênio.
- Ainda não compartilho de tanto entusiasmo – replicou Marisa - Mas, confio em ti, sei quanto és perseverante e haverás de lutar, até conseguir o que desejas - beijaram-se mais uma vez antes de recomeçarem a caminhada rumo ao sobrado.
A pouca distância, escondida atrás das pedras, Clara os observava. Ao vê-los distanciar-se correu impetuosamente na direção contrária. Naquele instante a lua cheia despontou entre as águas; extenuada, estirou-se na areia.
Enquanto a esposa tentava fazer o menino dormir, Eugênio dispôs-se a ler um fascinante livro policial retirado da estante. Tão absorto estava, que a entrada de Santana o assustou. Viera avisá-lo sobre a decisão de sair à procura de Clara. Ele consultou o relógio para confirmar o adiantado da hora:
- Por que esperaste até agora, não vês quanto é tarde? - estranhou.
A velha governanta suspirou longamente e preferiu silenciar. Antes que eles chegassem ao sobrado, quantas noites tivera de sair a qualquer hora para vasculhar as redondezas, pelo mesmo motivo, como se dispunha a fazer naquele momento? Enquanto vestia a capa, tentava adivinhar onde poderia achá-la desta vez. Provavelmente em um dos três lugares: adormecida na areia, sobre os escolhos tentando pescar, ou vagando nos arredores da vila de pescadores.
Santana partiu decidida a encontrá-la. Novamente sozinho e absorto em preocupações, Eugênio perdeu o interesse pelo livro interrompido. Se os recursos da psiquiatria se mostrassem inúteis para devolver à Clara a sanidade perdida, desde o brutal assassinato de seu pai?
A esta suposição, grande desânimo ameaçou dominá-lo. Quanto os fatos poderiam ter sido diferentes... Gostaria de acreditar na possibilidade de seu amigo ter superado a intensa revolta, durante os últimos anos, enquanto vivera acompanhado apenas por sua filha entre o céu e o mar.
Depois da morte de Rosana, aos poucos, o pai transferira para os seus ombros as rédeas dos negócios. Na tentativa de afastar o fantasma da solidão, Antero adquirira o hábito de viajar quase o ano inteiro. Procurava novidades em exposições e eventos, mas, sua predileção recaía sobre leilões e feiras de animais, de onde trazia belos exemplares. De bom grado, Eugênio assumira a administração das fazendas; sanava os problemas menores, enquanto o esperava para decidirem juntos os grandes problemas. Admirava o equilíbrio, o tirocínio que ele demonstrava nesses momentos. Desfizera-se de algumas propriedades herdadas de sua mãe; restaram duas fazendas maiores, próximas uma da outra.
Antero planejou doá-las aos filhos. Para atender ao desejo de sua mulher, seria de Fabíola, depois do casamento com Tomé a bela fazenda Santa Rosa, dotada de extenso canavial. Servira de residência aos seus avós, na qual ele sonhara recolher-se, em companhia de Rosana quando a velhice chegasse. Reservara para o filho a fazenda Consolação, de grandes pastos apropriados aos animais de corte.
Eugênio despertou para a realidade com o barulho do telefone. Do outro lado, a irmã o recriminou em tom de galhofa:
- Estou ofendida com vocês dois. Marisa reencontrou a filha há tanto tempo perdida, e nada me contaram? – Em tom ameno, Fabíola acrescentou - Antes de voltarem para casa, preciso conhecer minha sobrinha.
- Não fiques magoada por tão pouco, minha querida. Farei melhor, para que possas satisfazer tua curiosidade, amanhã levarei Clara ao hotel – prometeu Eugênio, feliz por ouvir sua irmã - Há mais algum outro assunto importante?
Por instantes pairou o silêncio, afinal ela respondeu:
- Papai deve chegar neste fim de semana. Vem cheio de novidades. Quer discutir contigo sobre a reforma do sobrado. Isso me preocupa.
- Preferes deixar como está? – gracejou o irmão - Ultimamente, andas tão aflita!
- Claro que não, bobo. Minucioso e perfeccionista como é, nosso pai pode atrapalhar, sabes disso – rebateu Fabíola bem humorada - Quando essa reforma começar terei de ficar muito atenta com o prazo final, senão papai inventará mil coisas. Mudando de assunto, quando vocês pretendem voltar para a fazenda? Ah, como gostaria de ir também, morro de saudade.
Eugênio mal a deixou terminar:
- Conheço bem o alvo de tua saudade. Depois que o velho chegar, por que não viajas em nossa companhia?
À sua provocação, Fabíola replicou com gostosa risada:
- Estás impossível. Adeus.
Entregue novamente à leitura, Eugênio somente percebeu que a noite cedera lugar à madrugada, ao ouvir o ruído de passos. Visivelmente cansada, Santana surgiu no corredor em companhia de Clara, agarrada ao seu braço. Depois de ajudar a menina a recolher-se ao seu quarto, disposta a conversar, a governanta aproximou-se com um longo suspiro:
- Deu trabalho encontrá-la, corre mais que lebre assustada. O pior de tudo, são os moradores da vila. Pobres ignorantes, todos fogem ao vê-la, como o diabo da cruz. Acreditam que esteja possuída por maus espíritos.
Ao que Eugênio replicou:
- Se por acaso pensassem diferente, perderiam os receios e poderiam maltratá-la. Vamos dormir? O dia já amanheceu – convidou.
VIII Capítulo

A SANTA ROSA



Diante dos argumentos da governanta, Eugênio e Marisa decidiram levá-la na viagem. Evitariam o tumulto no raciocínio de Clara, quando a reforma do sobrado tivesse início, principalmente a inevitável convivência com estranhos, inclinados a transformá-la em objeto de curiosidade.
Muitas vezes haviam surpreendido os seus ternos olhares em direção a Luciano, a melhor garantia de um percurso sem grandes surpresas. Como eles previram, Antero chegara cheio de planos para começar a restauração do velho sobrado. Prevendo grandes aborrecimentos Fabíola resolvera acompanhá-los na viagem.
Ao ver a mocinha dentro do carro, compreendeu por que o irmão nada quisera explicar. Ouvira comentários de hóspedes sobre uma criatura esquisita, sempre a rondar os escolhos à espera de uma embarcação fantasma, fruto de seus devaneios. Com frases desconexas, a menina vagava entre eles e se tornara alvo de muitos gracejos. Sentiu-se pouco à vontade sob o olhar atento de Clara, até Marisa sorrir e piscar o olho:
- Você ainda não a conhecia, não é mesmo? Nós a trouxemos para fazer companhia ao Luciano. Eles se dão muito bem – explicou.
Ao ouvir o seu nome, o menino agitou-se alegre na cadeira e bateu palmas. Os dois puseram-se a pular e gritar ao mesmo tempo até a intervenção de Eugênio, que precisava de sossego ao volante.
Anoitecia quando chegaram à fazenda Santa Rosa. Despedindo-se da terra, o sol lançava os seus revérberos de fogo sobre a copa das árvores e as sombras do anoitecer surgiam devagar, na hora melancólica do poente.
Diante da bela casa de madeira, antes de descer com Luciano ao colo, Eugênio acionou a buzina, até Lígia, Maria e Tomé acorrerem. Este cumprimentou os recém chegados com um toque no chapéu, e começou a transportar a bagagem para dentro, seguido de perto por Fabíola que não parava de falar, ansiosa por contar-lhe todas as novidades, enquanto os demais subiam os poucos degraus de entrada, esticando os membros entorpecidos depois do longo percurso.
De mãos dadas a Clara, Marisa cumprimentou sua mãe, sem notar o olhar esgazeado que a menina lançara ao capataz.
Enlaçado pela noiva, Tomé entregou-se aos devaneios; muito em breve deixaria de ser o obscuro homem de confiança da família, o simples encarregado. Com um pouco mais de paciência para suportar aquela ingênua mulher e sua enfadonha tagarelice, seria o dono de toda aquela terra.
Depois de retiradas todas as malas, Tomé foi à procura do futuro cunhado. Eugênio aproximara-se da cocheira onde os animais estavam recolhidos. Depois de trocarem caloroso aperto de mãos, Eugênio encarou o homem corpulento, de face trigueira e expressão dura. Antes de falar, encheu os pulmões do cheiro de mato:
- É desnecessário te perguntar sobre as novidades e os problemas, já conheço tua resposta: “Corre tudo muito bem”. Mesmo assim, por desembargo de consciência quero saber: como vão as coisas? - indagou.
Sem responder, Tomé rodeou-lhe os ombros com o braço e puxou-o em direção à casa:
- Venha, estão à nossa espera. Vamos lá para a cozinha, estaremos mais à vontade – depois entregou a surpresa - Maria preparou deliciosos quitutes para a chegada de vocês.
Durante a refeição, ao ouvir o relincho dos cavalos lá fora, Eugênio sentiu involuntária saudade; muito em breve a Santa Rosa seria apenas de Fabíola, Tomé e seus filhos. O pai sentia predileção por aquela propriedade, conhecia cada animal pelo nome e esperava da filha igual sensibilidade.
Depois de seu casamento, Fabíola seria a dona de tudo aquilo; só lhe restava torcer para que fosse feliz ao lado de Tomé, o novo membro da família Marcolino.
Sob os protestos de Lígia, guardaram os pertences de Clara no quarto vizinho ao do casal. Enquanto estivessem na Santa Rosa, ela planejara dispensar-lhe os cuidados e carinhos sempre negados. Se compartilhassem o mesmo quarto, procuraria conquistá-la, apaziguaria o grande sentimento de culpa acumulado por tantos anos. Ao vê-la pela casa no encalço do pequeno Luciano, Lígia recusava-se a crer na gravidade de seu estado.
Na manhã seguinte, Eugênio dispôs-se a inspecionar as fazendas em companhia de Fabíola e Tomé. Começaram pelas baias dos animais e durante o passeio prestou pouca atenção ao que via ou ouvia. Sentia-se inquieto, os pensamentos distantes, fixos na imagem de Clara, recostada à porta na hora de partirem, o olhar esgazeado que tanto o impressionava, fixo em Tomé.
Urgia levá-la aos melhores especialistas para o tratamento adequado.
Galoparam por toda manhã. Depois de almoçarem na fazenda Consolação, percorreram o extenso canavial onde os cortadores e suas famílias trabalhavam, desde os primeiros raios de sol até quase o escurecer.
Na estrada, cruzaram com os caminhões enfileirados a caminho das usinas onde deviam descarregar. Extraído o melaço na moenda, o bagaço de cana servia de ração para o gado. Desde os tempos de meninice, Eugênio acostumara-se àquele cheiro forte espalhado pelos ares. Penetrava em suas narinas, percorria-lhe o sangue, impregnava-lhe a pele. Longe dali, sentia-se deslocado e ansiava por voltar. Este era o seu verdadeiro mundo.

IX Capítulo

NOVA VIDA



Determinado a cuidar do andamento da reforma, sem interferências, Antero despachou os empregados e a governanta. Até o sobrado ficar pronto, Santana deveria pernoitar no hotel.
Acostumada a viver no velho casarão, a pretexto de trazer-lhe refeições e recados do novo gerente, Santana aparecia quando menos esperava. De vez em quando a ouvia resmungar contra a forçada ociosidade, melhor seria ter ido para a fazenda. Lá, tomaria conta de Clara.
Completamente envolvido pelo pandemônio de vozes e pelo vai-e-vem dos operários, Antero pouco prestava atenção. Em busca de novidades, os filhos telefonavam todos os dias.
Segundo a opinião de Lígia, o profissional mais credenciado para cuidar de sua neta se chamava Claudemir Raposo, médico analista, psiquiatra e proprietário de famosa clínica da Capital. Ela o conhecia desde quando Marisa voltara a viver na Capital e precisara de acompanhamento psicológico. Tanto insistiu nessa tecla que Eugênio e Marisa acolheram sua valiosa sugestão, desde que pudessem conhecer a clínica, o professor e seus métodos de investigar o caso de Clara.
Após as primeiras tentativas infrutíferas, eles foram recebidos no consultório do credenciado psicanalista. Discreto, simpático e bem apessoado, Claudemir Raposo os recebeu, esperou que a Senhora Siqueira terminasse a longa narrativa sobre o problema de sua neta, mergulhada em si mesma após a violenta morte do pai.
Observou discretamente o olhar de Marisa procurar com insistência os olhos de seu marido em busca de aprovação. Lembrou-se daquela jovem, que fora sua cliente aos quinze ou dezesseis anos; continuava linda, o tempo parecia não a ter afetado.
Quando Lígia terminou, como se tivesse adivinhado o que ele pensava, Marisa comentou:
- Professor Raposo, a partir do instante em que cheguei nesta sala, anos atrás, em companhia de mamãe, o senhor ajudou-me a voltar a viver, a superar meus tormentos e inseguranças. Sei que posso confiar minha filha aos seus cuidados.
Lisonjeado, o Professor Raposo sorriu com indulgência:
- Obrigada por lembrar, senhora Marcolino. O caso de sua menina interessou-me, farei o possível para ajudá-la. Se houver possibilidade, além da paciente, pretendo conhecer e ouvir cada um dos envolvidos em seu problema. Ao sair, agendem com a secretária a próxima entrevista, está bem?
Muito tempo depois de saírem, ele ainda olhava em direção à porta fechada, dominado pela compaixão.
Baldados os esforços para convencer Clara a visitar a clinica, todos começaram a opinar sobre a melhor forma de ajudá-la no processo de cura.
Em constante defensiva, ela reagia de forma imprevista, sempre com agressividade. Nas horas em que todos dormiam, Clara passeava insone pelo quarto; deixava escapar um riso suave, quase terno, entremeado de frases desconexas, rilhava os dentes ou chorava baixinho. Para ela, a vida não tinha sentido.
Muitas vezes, sobressaltado com o barulho da porta de seu quarto, Eugênio despertava, precipitava-se para fora a tempo de reconduzi-la à cama.
Certa madrugada, ela o olhara por instantes, depois balbuciara inquieta:
- Deixe-me sair, quero ir embora. Não quero morrer...
Sem compreender direito, Eugênio procurou acalmá-la:
- Está bem, vamos. Vou contigo. – propôs - Está muito escuro lá fora, é perigoso andar por aí, sozinha.
Assim dizendo, segurou-lhe a mão, disposto a colocar em prática o que dissera.
Diante da porta principal, Clara estacou, pondo-se à escuta. Apenas o silêncio da madrugada, cortado vez por outra pelo canto de um galo.
Entretanto, arregalando os olhos ela perguntou:
- É ele, não é? Ele veio me buscar? – sem esperar resposta, correu aos gritos escada acima - Não deixe! Não deixe! – suplicava.
Somente ela ouvia os passos e as risadas ameaçadoras, que a transtornavam a ponto de gritar ensandecida com as duas mãos nos ouvidos.
Antes que Eugênio pudesse acalmá-la, repetindo a súplica, Clara trancou-se no quarto. Despertos, os outros moradores revezaram-se pelo restante da noite; em vão, tentavam convencê-la a destrancar a porta de seu quarto. Extenuados, retornaram aos seus leitos.
Cada vez mais ansiosos para conferir os progressos de restauração do sobrado, aquele foi o pretexto apropriado a Fabíola e Tomé. Com anuência de Marisa e Eugênio, foram buscar Santana no balneário. Ninguém melhor para lidar com as esquisitices de Clara, o pulso firme da velha governanta haveria de conduzi-la à clínica; sobretudo, ela poderia ajudar por conhecer importantes detalhes de sua atribulada infância.
Depois de percorrer as vizinhanças, sem resultados, decidido a encontrá-la Eugênio enveredou pelos campos. Por onde passava, os lavradores davam notícias. Há pouco tempo, a mocinha passara em desenfreada correria.
Apesar de extenuado, esporeou o cavalo para continuar a busca, cada vez mais enfurecido consigo mesmo por ter confiado tanto em sua capacidade para lidar com tamanha rebeldia. Embasado em quê, se questionou Eugênio, nenhum sinal percebera quando procurara ajudá-la de estar consciente de alguma coisa. Faria melhor se ouvisse as opiniões de Marisa, quem sabe, o famoso instinto materno a inspirava?
Tudo começara naquela manhã. Sem fazer-se anunciar, Claudemir Raposo atravessara a porteira da Santa Rosa, disposto a familiarizar-se com os indivíduos e o ambiente onde a sua futura cliente habitava.
Relegados ao segundo plano os inúmeros compromissos e as consultas, atendera aos insistentes apelos de Lígia e à natural curiosidade.
Ao deparar-se com o clínico de sorriso afável e olhar compassivo, Clara o havia encarado por breves instantes com hostilidade, antes de fugir ensandecida. Desaparecera como agulha perdida no palheiro.
Se fosse preciso, Eugênio continuaria sua busca, até mesmo durante a noite; ardilosa e arisca, Clara poderia estar em qualquer parte.
Enquanto Marisa tentava amenizar o julgamento desfavorável do psicanalista, este se limitava a sorrir. Aceitou o café trazido por Maria e trocou ideias com os presentes, refletindo sobre o melhor procedimento para se aproximar da menina. Naquele dia seria inútil persegui-la, apostou consigo mesmo; Clara voltaria quando bem lhe aprouvesse.
À tardinha, desalentado, com os nervos em frangalhos, Eugênio voltou de cenho franzido por ter-se desgastado inutilmente: onde Clara poderia estar?
Afetuosa, Marisa ouviu o seu relato sobre os lugares onde a procurara e tentou animá-lo:
- Ela pode se encontrar nas vizinhanças onde menos imaginamos. Há de voltar quando sentir fome e sede. Foi o palpite do Professor Raposo, ele me fez prometer que a levaríamos amanhã à sua clinica.
Com um suspiro desalentado, ele sentou-se:
- Tomara que possas cumprir tua promessa, estou exausto de correr atrás dessa maluca. Desculpa o desabafo, minha querida. Onde está o nosso filho?
Bem perto dali, entre os animais da cocheira, Clara continuava à espreita. De onde se encontrava, podia ver a frente da casa e controlar tudo.
Sabia que o Professor Raposo há muito tempo desistira de esperá-la. Vira Eugênio guardar o cavalo, acabrunhado, depois da busca infrutífera. Quando ele entrou em casa, grande placidez espalhou-se pelo seu rosto. Começou a cantarolar baixinho, as pernas enroladas pelos braços, a cabeça apoiada nos joelhos. Dentro de pouco tempo adormeceu.
Mal o dia amanheceu, de seu posto de observação, Clara viu os viajantes voltarem para casa. De olhos bem arregalados, esperou o carro estacionar. Notou aterrorizada o homem descer atrás da moça. Antes que o trio entrasse em casa, precipitou-se intempestiva nos braços de Santana, que acabara de chegar em companhia de Fabíola e Tomé.
A recepção efusiva amenizou os contratempos provocados por sua atitude anterior, e reacendeu as esperanças de a convencerem a cumprir o prometido ao Professor Raposo.
Quando Maria veio chamá-los para o café, Clara foi a primeira a correr esfomeada para a mesa.
Enquanto repartia a pamonha, Fabíola detalhava a viagem ao irmão:
- Papai me pareceu bem à vontade no meio daquela barulheira toda. Está adorando a novidade. A meu ver, se o sobrado fosse demolido, a reconstrução tomaria menos tempo e dinheiro. – Lamentou-se.
Antes que Eugênio pudesse responder, Tomé interveio:
- Nem tão cedo aquilo ficará em condições de acolher a festança de nosso casamento. É melhor mudarmos nossos planos.
A noiva rebateu em tom resoluto:
- E decepcionar papai? Vamos lhe dar a chance de realizar o meu casamento como deseja, no sobrado onde nasci, e se tudo correr bem, no dia combinado – voltou-se para a cunhada - Por mérito de seu pai, Marisa, o hotel vai muito bem. Ricardo adaptou-se rapidamente, parece talhado àquele burburinho de entra e sai de hóspedes.
Interrompeu-se à entrada de Lígia, antes de continuar, esperou-a acomodar-se:
- Ricardo nos pediu para transmitir-lhe este recado: está magoado por não ter recebido nenhum telefonema seu, nenhuma visita desde que chegou ao balneário.
Sem comentários, alegando falta de apetite, Lígia levantou-se e voltou para o seu quarto. Eugênio acompanhou-a com o olhar enquanto se afastava, em seguida voltou-se para Fabíola:
- Como pombo correio, minha querida, parece que você não agradou – provocou - Paira entre aqueles dois alguma coisa muito estranha. Cumpriste tua obrigação, deixa que o tempo se encarregue do resto.
No outro extremo da mesa, Clara repartiu sua banana com Luciano. Ao invés de comê-la, o menino esfregou-a sobre a toalha. Marisa levantou-se para retirá-lo de seu lugar, com a filha nos calcanhares:
- Também quero lavar as mãos! – bradou – Estão sujas, tanto quanto as dele.
Santana percebeu o esforço de Clara para atrair a atenção de sua mãe. Quando esta retornou à mesa, comentou:
- Ela me pareceu enciumada, acho um bom sinal.
Marisa olhou os filhos, pensativa. Gostaria de compartilhar daquele otimismo, porém os fatos a proibiam de fazê-lo. Eugênio fez-lhe uma carícia e respondeu em seu lugar:
- Se ao menos conseguirmos levá-la à clínica, teremos motivos para acreditar em bons sinais. Por enquanto...
X CAPÍTULO
NA CLÍNICA


Quando todos se recolhiam, o átrio da capela construída ao lado da casa grande desde os remotos tempos de escravos e dos antepassados tornava- se o melhor local para Tomé e Fabíola se encontrarem. Naquela noite, o casal surpreendeu-se ao ver no interior da pequena igreja, Lígia, a mãe de Marisa ajoelhada diante do altar, como a esperá-los.
- Há pouco fui indelicada - justificou-se a mulher, de olhos baixos e expressão contrita - abandonei bruscamente a sala de jantar depois de ouvir o recado que você me trouxe, e não poderia dormir antes de desculpar-me, Fabíola.
A moça apertou entre as suas a mão da senhora e tranquilizou-a:
- Não precisava perder o sono por tão pouco. Se a senhora prefere desconhecer as notícias de Ricardo, é um direito seu, procurarei satisfazê-la e damos o assunto por encerrado.
Lígia acomodou-se ao seu lado visivelmente atormentada, de súbito começou a chorar:
- Ao invés de fingir que está tudo bem entre nós, como se a culpa me coubesse por essa situação criada por ele, a atitude de Ricardo só faz piorar tudo. Talvez nunca possa perdoá-lo.
Fabíola tentou acalmá-la:
- Por favor, não se constranja. Quer um conselho? Espere mais um pouco, quando o dia clarear procure Marisa e abra o seu coração. Ela haverá de compreendê-la.
- Deixe-a falar – cortou Tomé – E se o problema for muito grave? Deve se lembrar que Ricardo a está substituindo na direção do hotel.
Apesar de surpresa com suas palavras, Fabíola anuiu:
- Você está com a razão, como não pensei nisso? Muito bem, se a senhora quiser, estamos prontos a ouvi-la.
Depois que a mulher aparentemente mais sossegada lhes deu boa-noite e voltou para casa, dominados pela mesma dúvida eles se entreolharam. Habituada à forma cautelosa de seu pai proceder na contratação de empregados, Fabíola se perguntou, ele saberia que Ricardo perdera o emprego anterior por estar assediando funcionárias?
Decidiu agir com a devida cautela e averiguar o assunto quando fosse ao hotel Marcolino, conversaria com Ricardo antes de acreditar nas palavras da esposa ofendida ou de comentar o assunto com o pai.
Passada a intensa movimentação do corte da cana, a fazenda Santa Rosa continuou em barulhenta azáfama. Sob as ordens de Fabíola, os dias que antecederam a grande festa transcorreram na mais ordenada precisão. Enquanto os homens se ocupavam dos afazeres no campo, ela comandava os preparativos para o próximo casamento.
Cedera aos rogos de Tomé, não mais esperariam a conclusão da demorada reforma no sobrado de Pedra Linda.
Ajudado pelo capataz, como de hábito Eugênio ia e vinha em constante ebulição entre as duas fazendas. Vez por outra, Tomé se ausentava para ir ao Jóquei Clube onde Antero inscrevera o melhor alazão de seu haras.
Acompanhada por Santana, Clara deixou-se conduzir passivamente à clínica de Claudemir Raposo. Poucos minutos depois de chegarem, subitamente pareceu despertar; tornou-se possessa, tentou fugir distribuindo socos e pontapés enquanto proferia frases desconexas, até ser dominada pelos enfermeiros e auxiliares.
Nos primeiros dias de internamento, a menina permaneceu muda, recusando qualquer alimento. Certa noite, o plantonista a encontrou pendurada ao teto por um lençol, livrando-a de enforcamento. A adaptação foi demorada e trabalhosa.
Contudo, previamente informado por Santana que ela sabia ler e escrever, o Professor Raposo conseguiu despertar seu interesse pela sala de leitura. Ali Clara se detinha por horas seguidas com um caderno e um lápis na mão, a esboçar formas e figuras pouco compreensíveis aos leigos. Receosa de padecer dos mesmos pesadelos quando dormisse, a menina passou a sofrer de insônia e precisou ser medicada.
Demonstrava inteligência e ansiedade para aprender, e nessas horas poderia confundir-se às mocinhas de sua idade, não fossem as repentinas crises de profundo mutismo, trancada em seu quarto.
O psicanalista acreditava que as formas, figuras e cores dos desenhos de Clara seriam úteis para norteá-lo no seu tratamento. Debruçado sobre os rabiscos dos pacientes, neles vislumbrava os tormentos de cada um.
Nas garatujas de Clara encontrou fortes indícios da cena do crime. O sangue, o punhal, o pai morto, o assassino em fuga.
Durante os primeiros meses, Eugênio e Marisa frequentaram a clínica, ouviram os relatos de seu comportamento, ansiosos pelo dia em que a pudessem levar novamente para casa.
Transcorrido o ciclo de completo confinamento, otimista quanto aos resultados, o professor Raposo os recebeu em seu escritório. Quando eles sentaram, com um sorriso animador ele disse:
- Procurem agir naturalmente. O sucesso desta primeira visita é importante. Estão prontos?
Através do vidro da sala de recreação, avistaram Clara entre os demais internos. Quando notou que a observavam, ergueu-se vivamente, a fisionomia radiante, e correu ao encontro deles. Raposo sentiu-se satisfeito e os deixou a sós por alguns momentos.
- Onde está Santana? Por que vocês me deixaram aqui? – perguntou. Eugênio sorriu confiante:
- Da próxima vez ela virá conosco, prometo. Quando nosso amigo Claudemir aconselhar, poderás voltar para casa. Antes que isso aconteça, procura ser carinhosa com Marisa, ela tem se preocupado contigo.
Sem prestar atenção ao que ele dissera, Clara segurou-o pela mão e pediu em tom suplicante:
- Não quero mais ficar sozinha neste lugar. Leve-me até onde está Santana.
- Precisas ficar mais um pouco, sejas paciente! – interveio Marisa em tom aflito - Também estamos sentindo a tua falta.
Sem terminar o que pretendia dizer, ela fugiu do recinto em pranto. Eugênio a viu desaparecer, manteve o semblante tranquilo e segurou a mão da enteada:
- Ela tem andado nervosa. Logo ficará bem, não te preocupes – garantiu - Vamos fazer o possível para atender o teu pedido.
Interceptada por Raposo quando se dirigia precipitadamente para a saída, Marisa foi conduzida até o escritório. Antes de oferecer-lhe o copo com água, o psicanalista esperou alguns minutos até vê-la mais calma.
- Ela continua a ignorar-me. Até quando terei de aguentar isso? – queixou-se Marisa depois de beber água.
O Professor Raposo girou entre os dedos a caneta que segurava, e sem fitá-la respondeu:
- Perdoe-me, mas preciso ser muito franco com a senhora. Seja razoável. Afinal de contas, milagres não costumam ocorrer com frequência.
- Diga-me, quando terei minha filha de volta? – impacientou-se Marisa – Por favor, preciso saber: nunca mais, não é? Terei de pagar o resto de minha vida por tê-la abandonado.
O Professor Raposo conteve um sorriso e respondeu em tom paciente:
- Marisa, permita-me tratá-la assim, a senhora deve esquecer um pouco de si mesma. Tenho procurado fazer o melhor para ajudar sua filha, mas, convenhamos, até agora o progresso foi mínimo. Ao menos ela conseguiu superar a primeira fase a que chamo de adaptação. Habituou-se à convivência com outros pacientes, raramente tem crises histéricas – ergueu-se, apoiou a mão em seu ombro e continuou - Essa expressão nunca mais é forte e pessimista. Vamos descartá-la e ter fé no poder de recuperação de Clara. A qualquer momento ela poderá recobrar o senso de realidade. Nessa hora, estarei atento para ajudá-la a lidar com suas lembranças. Procuro ser o mais honesto possível ao lhe afirmar isto. Enquanto esperamos por esse momento, conto com sua cooperação e confiança no meu trabalho.
- Ajude-me a conquistá-la, por favor... – implorou Marisa de olhos baixos.
- Sei que é doloroso demais para a senhora esperar, enfrentar todos os altos e baixos desse longo tratamento – reconheceu Raposo – Encare como a consequência natural do período que a menina passou sem o seu afeto, quando só podia contar com o apoio e a presença do pai, a quem viu morrer, o que a deixou traumatizada. No entanto, observei que existe um fato positivo: o apego, a confiança que ela demonstra pela governanta e por seu marido. Eles poderão ser a ponte que a senhora terá de palmilhar até Clara. Lembre-se, necessitamos armar-nos de tolerância e delicadeza para ajudá-la a curar-se.
- Perdoe-me, tenho sido tão egoísta! – lastimou-se Marisa.
Claudemir fingiu não haver escutado e concluiu:
- O caso de sua filha mais parece uma colcha de retalhos. Temos de armar-nos de paciência e de tempo para decifrar o enigma, compreendeu?

XI CAPÍTULO

O CUNHADO



À chegada do Natal, como em todos os anos, a fazenda Santa Rosa encheu-se de rebuliço. Diante da casa, embaixo da árvore mais próxima foi armado o magnífico presépio todo confeccionado em barro, herança passada através de gerações. Outra árvore secular foi enfeitada por luzes coloridas e bugigangas variadas. Para realizar essa agradável tarefa, acorreram moradoras mais jovens da fazenda, solteiras ou casadas. Os homens ajudavam, transportando objetos pesados, segurando escadas ou pendurando os enfeites mais difíceis.
A família e os convidados se misturavam aos trabalhadores, no pátio e no interior da casa. Depois do ritual de entrega dos brindes e de sorteios dos cestos de mantimentos, os favorecidos os transportavam até suas moradias. Previamente as mulheres recebiam sacolas de tecidos para as roupas novas de filhos, por sua vez, estes degustavam guloseimas desconhecidas durante os meses de trabalho na usina e se divertiam a valer durante o congraçamento.
Logo ao anoitecer, os recém-casados chegaram para a ceia. Como de costume, Antero trouxe convidados para compartilhar da recepção.
Apesar de ter-lhe assegurado que Lígia estava ausente, em rápido cruzeiro patrocinado pelo genro, Ricardo sentia-se receoso e contrafeito, até encontrar os braços de Marisa para conduzi-lo ao centro da festa. Conseguira manter-se na gerência do hotel Marcolino depois da reunião com Antero e Fabíola, que para lá se deslocara antes do casamento, disposta a esmiuçar os motivos de sua demissão da seguradora.
Na ocasião, Antero o deixara falar sem interrupções. Há muito tempo compreendera o pretexto forjado pela seguradora para dispensar o empregado antigo, em prol de um plano de contenção de despesas. Com sua experiência e o fato de ser o sogro de Eugênio, dera-lhe oportunidade para tentar outro ramo. A habilidade por ele demonstrada o satisfez. Para Fabíola restou analisar os prós e contras e dar o caso por encerrado.

À meia-noite, quando todos se encontravam em torno da grande mesa para o congraçamento, Eugênio e Fabíola entreolharam-se complacentes. Haviam notado o interesse de seu pai por uma das convidadas, ainda fascinante e simpática dama, viúva recente de outro fazendeiro, a Senhora Oliveira apressou-se em assegurar-lhes quanto estava satisfeita por haver cedido à insistência do anfitrião. Ele a livrara de continuar sozinha no balneário onde aproveitava o breve veraneio, antes de retornar ao consultório.
Desde o falecimento de Rosana, era a primeira vez que os filhos observavam o interesse de Antero por outra mulher. Intimamente, ambos desejaram ardentemente que o sentimento fosse recíproco e Elisabeth Oliveira encerrasse a solidão daquele homem , ainda predisposto a recomeçar.
As cigarras cantavam e o silêncio do entardecer era perturbado apenas por esse canto monótono. No céu onde o avermelhado do crepúsculo fora substituído por uma coloração acinzentada, o disco branco enorme pouco a pouco subiu para o infinito adquirindo tonalidade amarelo-prateado. Eugênio sentou-se nos degraus defronte a casa, olhar atento ao nascer da lua.
No interior da casa, de quando em quando o ruído de vozes e de pratos se entrechocava. Naquele primeiro dia do ano, o almoço arrastara-se pela tarde.
Despontou no céu indefinido ponto brilhante a piscar solitário, próximo ao disco lunar, logo apareceu outro e mais outro. Em instantes a noite povoou-se de estrelas, despertou-o de seus devaneios o frescor da brisa, fazendo-o estremecer levemente.
Eugênio pretendia levantar-se quando o seu olhar foi atraído para a árvore no meio do pátio, ainda enfeitada de luzes coloridas apagadas. Lembrou-se de Clara no asilo, ela, que amava tanto a liberdade. Como teria sido o seu Natal entre os outros enfermos, sem o direito de sair? E se fosse buscá-la, quem sabe os ares da fazenda a ajudariam a curar-se? Repentinamente, ela poderia surpreendê-lo com algumas daquelas costumeiras crises e todos o acusariam pela atitude intempestiva. Afastou a ideia a contragosto. Atribuiu-a ao exacerbado egoísmo, ansiava tanto por rever aquela pobre criança.
Mudou o rumo dos pensamentos e começou a recordar todos quantos trabalhavam nas fazendas Santa Rosa e Consolação. Um a um desfilaram com seus defeitos e qualidades. Muitos estavam ali desde que nasceram. Entre as exceções havia o capataz Tomé, agora seu cunhado. Em pouco tempo tornara-se o seu braço direito.
Graças às recomendações de Santana, Tomé fora transferido do sobrado onde se tornara cozinheiro para trabalhar nas fazendas. Nos primeiros dias de sua chegada, tivera de enfrentar a maledicência de alguns por gostar de vangloriar-se de seus dotes culinários. Os rudes trabalhadores custavam a compreender o homem grandalhão debruçado ao fogão, junto às mulheres. Sempre atento à situação dos empregados, Eugênio impressionou-se com a maneira estóica de Tomé aceitar as galhofas sem reclamar. Aos poucos, conquistado por sua conduta afável, tomado por impulso de simpatia oferecera-lhe a vaga de administrador das duas fazendas.
Desde então, jamais lhe dera motivos para arrepender-se; Tomé procurava de todas as formas provar-lhe o reconhecimento, desdobrando-se para dar conta do recado.
Antes lerdos e desconfiados em consequência dos maus bofes do capataz anterior, Tomé conseguiu estreitar as relações dos canavieiros com os patrões. Sob as suas ordens, eles se tornaram confiantes, brincalhões, cantavam no serviço e traziam as famílias para ajudar em épocas de cortar a cana. Todos o respeitavam e demonstrava estimá-lo, Tomé se tornou o porta-voz de suas demandas. Se elas ultrapassavam o limite do razoável, encontrava palavras para confortá-los ou alegrava-os quando podiam ser atendidas. Ganhou o direito de decisão.
Desde que Eugênio assumira o controle de tudo, Tomé costumava segui-lo por toda parte, acatava suas ordens, quase adivinhava os seus desejos. Ao contrário de outros solteiros, nos finais de semana fechava-se no quarto ou perambulava pelo campo na garupa do cavalo, incansável, ao invés de espairecer nas cidades próximas.
Por esse isolamento espontâneo, os espirituosos o apelidaram de Monge; às escondidas caçoavam dele. Tomé limitava-se a sorrir. Somente perdia a natural reserva com Fabíola, desde os primeiros dias encontraram afinidades para animadas palestras, apreciavam estar juntos em longas cavalgadas pelo campo, ou nos serões festivos, até oficializarem o noivado.
Entregue às reminiscências, Eugênio despertou ao ouvir passos atrás de si, depois a sombra desenhou-se no chão banhado pelo luar. Desnecessário voltar-se ou levantar o rosto para reconhecer o recém-chegado.
Sem comentários, Tomé sentou-se tranquilamente ao seu lado. Expelindo longas baforadas do cigarro respirou fundo antes de arriscar:
- Está linda a noite, hein?
- Sim, muito bonita. Tomé... – hesitante, Eugênio examinou de soslaio o semblante impassível do cunhado:
- Antes de vir para cá, você fazia o quê?
O outro pigarreou:
- Era cozinheiro do sobrado. Por que isso agora?
- Tem razão. Desculpe a minha tolice. Deve ser o efeito desta lua cheia.
- Não precisa pedir desculpas, a noite está mesmo para confidências.
Eugênio levantou-se e confessou:
- Antes de sua chegada, cismava sobre aquela pobre mocinha. Sabe de quem estou falando, não é?
Durante alguns minutos, ficou em dúvida se Tomé ouvira sua pergunta. Com indisfarçável impaciência repetiu-a, só então o outro se ergueu, atirou o cigarro para longe e replicou:
- Certamente que sei. A doidinha, a filha de sua mulher. Pelo tempo em que está internada, deve ser mesmo um caso perdido - comentou em tom zombeteiro, voltou-se e tornou a entrar na casa.
Eugênio surpreendeu-se com o ostensivo cinismo de Tomé, ao referir-se à Clara. Quis amenizar a má impressão, conciliador foi em seu encalço:
- Que acha de caminharmos um pouco, enquanto as mulheres fazem o meu pai contar pela enésima vez suas estripulias de mocidade?
O cunhado hesitou, procurou apoio em Fabíola para esquivar-se. Ao vê-los chegar, ela havia corrido para encontrá-los. Ouviu o convite e rebateu enérgica:
- De jeito algum, vamos para nossa casa agora mesmo. Por que vocês dois precisam passear, sem acompanhantes, numa noite tão maravilhosa? Façamos melhor, vamos jogar baralho lá em casa? Aproveitaremos o luar, jogaremos a céu aberto até o dia amanhecer?
Secretamente feliz por Marisa haver declinado do convite, Eugênio saiu para um longo passeio sem destino certo. Queria dissipar a sensação de estranha inquietude que o assaltara, sem obter resultados.
No caminho, encontrou Antero e Elisabeth Oliveira cavalgando sob o luar.



XII Capítulo

REGRESSO



Na manhã seguinte, começaram as despedidas. Em companhia de seus convidados, da governanta, de Ricardo e da encantadora viúva, Antero regressou à Pedra Linda onde pretendia ocupar o sobrado. Afinal a reforma terminara.
Em nome dos bons tempos de anfitrião, ele vislumbrou a chance de reter Elisabeth ao seu lado. Ao percorrerem as dependências restauradas do velho sobrado, rogou para que ela lhe fizesse companhia no antigo lar. Esforçou-se para fazê-la entender o tamanho de sua solidão, ampliada ao grau insuportável se acaso recusasse sua proposta. Elisabeth acolheu seus rogos com um sorriso compreensivo, propensa a ficar ao seu lado.
Quando ela aquiesceu, surpreso e feliz Antero beijou-lhe as mãos e apressou-se em buscar sua bagagem no hotel, temeroso de vê-la arrepender-se.
Transformara o antigo quarto de hóspedes em confortável suíte. Sob o olhar vigilante e reprovador de Santana, cada vez mais rabugenta, ali instalou sua nova amiga, livre e solitária como ele.
Dia após dia, mais desvanecido por vê-la sob o mesmo teto, Antero dispunha-se a tudo fazer para agradá-la. No amplo terraço com vista para o mar, eles trocavam ideias e confidências sobre tudo.
Embora estivesse afastada de seu consultório durante a estação de veraneio, especialmente interessada em Clara, a filha de Marisa e Joca, de vez em quando Elisabeth pedia-lhe pormenores sobre a história dos Álvares, proprietários da antiga hospedaria.
Sentia curiosidade em conhecer a tragédia familiar da menina que lhe despertara, além do interesse profissional, instintiva e imediata simpatia.
Surpreendeu-se diante da resistência de Antero em satisfazê-la. Depois de constatar como ele se tornara evasivo, intimamente angustiado pelas lembranças do fim trágico de cada um dos membros daquela família, ela desistiu de atormentá-lo com perguntas e tentou conquistar a simpatia de Santana. A governanta gostava de falar sobre a mocinha e logo ficaram amigas.
Nos longos passeios à beira mar em companhia de Antero, Elisabeth conseguiu arrancar-lhe a promessa de acompanhá-la à clínica de Claudemir Raposo, seu colega de faculdade. Ele ainda relutou por alguns instantes antes de concordar. Temia a provável reprovação de Eugênio.
Entardecia no domingo quando eles chegaram à clínica. As visitas começavam a retirar-se. Antero e Elisabeth quase foram absorvidos pela balbúrdia de internos e parentes que se despediam pelos corredores. Antes de obter as informações que procuravam, eles avistaram Marisa a caminho da recepção onde o marido a esperava. Quisera ficar mais um pouco para observar o desempenho de Clara, naquela tarde, empenhada em imitar o trabalho das copeiras no refeitório.
Marisa estranhou a presença do sogro e da senhora Oliveira. Tentou disfarçar o desagrado, entretanto, ao encontrá-la Antero suspirou aliviado e cumprimentou-a efusivo:
- Ainda bem que te encontramos! Nunca estive num lugar como este. Onde está Eugênio, vieste sozinha?
Antes de responder, ainda aturdida Marisa retribuiu ao abraço de Elisabeth:
- De forma alguma, vou encontrá-lo. Ele deve estar conversando com o Professor Raposo. Gostariam de conhecê-lo?
Perspicaz, a senhora Oliveira declinou o convite:
- Se não fizer objeção, gostaria de conhecer a sua filha. De tanto ouvir falar sobre ela, aprendi a estimá-la e a desejar sua completa cura.
- Infelizmente vocês chegaram muito tarde - devolveu Marisa – As visitas aos domingos são liberadas, mas, com horários definidos. Nos outros dias, somente nos chamam quando acontece algum problema sério.
Antero não se deu por vencido. Segurou-a pelo braço, ganhou distância de Elisabeth para cochichar ao seu ouvido:
- Ainda não te disseram que Elisabeth é psicóloga? E muito renomada. Sugiro que a trates com a devida cortesia. Para começar, poderias levar-nos ao encontro do proprietário da clínica?
A nora disfarçou o desagrado, fez um gesto de aprovação com a cabeça e exibiu amplo sorriso ao conduzi-los de volta pelo corredor:
- Venham comigo. Quem sabe teremos a sorte de encontrar o Professor Raposo?
Apesar de confiar plenamente em sua equipe, o psicanalista circulava pela clínica a qualquer hora. Habituara-se a verificar pessoalmente o progresso de seus pacientes. Agradavelmente surpreso, reconheceu a antiga colega de turma; depois de trocarem afetuoso abraço, convidou os recém chegados para acompanhá-lo ao seu gabinete particular onde ele e Elisabeth recordaram os melhores momentos dos tempos estudantis diante de Antero, que se limitou a escutar pacientemente; a certa altura meteu-se de permeio:
- Para ser franco, professor, desde quando foi morar no sobrado Elisabeth não fala de outra coisa. Conseguiu me convencer a vir, cheia de esperanças de conhecer Clara. Será isso possível?
Agradou a Raposo o seu modo direto e franco. Trocaram um olhar de cumplicidade antes que respondesse:
- Admiro bastante as pessoas como o senhor, que não perdem tempo com rodeios. Tão mais fácil, não é verdade? Como já deve saber, a menina sofre de crises intempestivas, felizmente tem apresentado melhora e progresso significativo. Basta dizer que conquistou os funcionários. Aparenta tanto desejo de integrar-se que hoje recebeu permissão para auxiliar as copeiras.
- Tem alguma previsão de quando ela poderá voltar para casa? –perguntou Antero – Se isto acontecer enquanto Elisabeth estiver no balneário, poderíamos contar com o seu apoio.
- Parece que o senhor adivinhou os meus projetos, senhor Marcolino – respondeu Raposo em tom amável - Eles incluem o reencontro de Clara com o hábitat natural onde será possível observar suas reações, até que ponto readquiriu o desejado equilíbrio.
Antero lançou um olhar aflito para Elisabeth como a pedir socorro. Ela sorriu, meneou a cabeça com ar compreensivo, depois se voltou para Raposo:
- Pobre Antero, o seu palavrório parece que o deixou aturdido. Resumindo, isso significa que as crises intempestivas foram superadas?
- Ainda não. Podem ser evitadas – respondeu o Professor Raposo no mesmo tom - Desde que seja mantido o rigor da medicação adequada e não a percam de vista. Tratem-na com a máxima naturalidade e mantenham-me informado para qualquer eventualidade...
Marisa acabara de entrar e havia escutado tudo, cada vez mais surpresa não se conteve:
- Professor Raposo, está mesmo na hora de levar Clara para casa? - indagou assustada - Não acha que é cedo demais? Aqui, ela pode ser contida por gente preparada. E nós, como agiremos em caso de uma crise imprevista?
O psicanalista não pensou duas vezes:
- Só vai fazer bem à sua filha o convívio familiar e um pouco de liberdade, Marisa – afirmou – Saiba que o trabalho de Elisabeth é referência para todos nós que lidamos com a psicanálise. Desde nossa formatura, ela vem se destacando. Vocês tiveram muita sorte. Elisabeth poderá ajudar-me e observar a minha paciente, não é mesmo?
- Será um prazer, Claudemir. Trabalharemos em equipe – respondeu Elisabeth.
- Agora, acompanharei minha ilustre colega e o senhor Marcolino pelas dependências da clínica. Vamos? – convidou.
Através das janelas do refeitório, eles finalmente a conheceram. Clara servia-se à mesa entre os internos. O homem calejado pelo tempo estremeceu, e com esforço conseguiu segurar as lágrimas diante da vidraça que o separava de Clara. Os grandes olhos azuis eram idênticos.
Naquele momento, Antero sentiu-se transportado para a aprazível cozinha da antiga hospedaria onde Sílvia comandava os empregados, enquanto ouvia, como de uma região longínqua, o diálogo travado entre Claudemir e Elisabeth sobre os progressos da menina.
A grande pipa inflou, hesitou, depois foi levada pela ventania marinha até tornar-se uma mancha colorida esvoaçante no azul forte do céu.
Escutava-se até muito longe o barulho ensurdecedor do mar encapelado de encontro aos rochedos. No rosto bronzeado, de olhos azuis semicerrados, Clara acompanhava com atenção os movimentos do menino solitário com o seu brinquedo de papel. Sentada na areia, o sol queimando-lhe a pele Clara empurrava impaciente os cabelos que teimavam em cair-lhe na testa. Inesperadamente, a pipa fez uma reviravolta, precipitou-se em queda livre. Saltitante num pé o menino teimava em conservá-la no espaço, sem êxito.
O rosto congestionado por tremendo esforço mental, Clara começou a transpirar. Queria compreender o que a visão registrava. Por que o garoto pulava, segurava o carretel que ia desenrolando, por que aquele papel colorido voava sozinho? Sentia como se um torniquete comprimisse o raciocínio. Um minuto, dois, foi quanto durou a sua luta inglória. Desistiu, a face distendeu-se, explodiu em ruidosa gargalhada, agitou-se em convulsão.
Atraído pelo barulho, o menino tomou-se de pavor. Largou o brinquedo e desandou em correria. A poucos metros dali, numa das faixas de areia entre os escolhos, Elisabeth também ouvira. Recolheu tranquilamente a cadeira de lona, calçou as sandálias contendo o começo de ansiedade e aproximou-se. Encontrou-a segurando nas mãos o carretel e a pipa abandonados. Sentou-se ao seu lado e perguntou com naturalidade:
- Queres empinar também? Dá-me o carretel, quem sabe podemos aprender?
XIII Capítulo

LAMPEJO


Na fazenda Consolação, aonde viera pernoitar por causa do nascimento de um potrinho prometido ao filho, para driblar a insônia, Eugênio resolveu acompanhar até a cocheira o Doutor Felinto, veterinário e amigo de seu pai, morador antigo das redondezas.
Novamente era lua cheia. Percorreram proseando a pequena distância pelo campo prateado, sem ligar importância ao persistente pontinho luminoso. Sabiam tratar-se da chama de um cigarro de Tomé, que chegara antes.
Enquanto Felinto cuidava da égua, os dois homens sentaram sobre a grade fronteira para esperar.
- Vejo que também perdeste o sono por causa do nascimento deste potro - começou Eugênio.
Logo o outro rebateu:
- Engano seu. Preocupo-me mesmo é com Mimosa. É a sua primeira cria, desconfio que esteja atravessada. Este bichinho vai dar-lhe um trabalho e tanto.
- Agora não está mais, venham ver! - bradou Felinto, que estivera escutando.
Ao seu chamado, os dois acorreram para conhecer o recém-nascido que a mãe lambia orgulhosa. Era um belo filhote, castanho como a égua. Logo o pequeno Luciano o estaria cavalgando, pensou Eugênio satisfeito, sem observar o lampejo maldoso de inveja no olhar de seu cunhado.
Em casa, Marisa e Fabíola os esperavam. Depois de esmiuçarem a exaustão o acontecimento, os três homens acomodaram-se finalmente à mesa para tomar o café que elas haviam preparado. Lá fora os galos começavam a cantar. Continuariam a prosear ainda por muito tempo, porém Marisa levantou-se, acariciou o braço de seu marido e alertou-o:
- Precisamos voltar para descansar um pouco, ou estás esquecido de nossa viagem?
Eugênio aproveitou a deixa:
- Tens razão, vamos embora. Ainda queres convencer tua mãe a acompanhar-nos? Nunca vais desistir de reunir aqueles dois? – perguntou em tom de gracejo.
Em seu projeto de reconciliar os pais, mais uma vez Marisa pedira para que ele a ajudasse a convencer Lígia a visitar Ricardo no balneário.
Como era de seu estilo, Antero programara a recepção daquele fim de semana, sob o pretexto de reabrir o sobrado.
Seria a melhor forma de juntar a família em torno de sua nova companheira. Ansiava por reforçar de público sua gratidão por Elisabeth haver conquistado a confiança de Clara.
Tornara-se a companhia obrigatória de seus passeios e lidava sem dificuldade com os seus rompantes. Afeiçoado à pobre menina, Antero vira a psicóloga atraí-la pouco a pouco para o piano que estava abandonado a um recanto do salão. Jeitosamente, Elisabeth ensinara Clara a dedilhá-lo quando estava inquieta.
Ao contrário de todos os anos em que relegara a própria carreira para compartilhar da intensa vida social em companhia de seu marido Cirino Oliveira, desde a morte deste Elisabeth refugiara-se no consultório para cuidar dos pacientes que a procuravam.
O caráter afável e generoso do marido a quem amara, bastava para considerar-se bafejada pela sorte grande.
Depois que ele morrera Elisabeth passou a fugir dos lugares que pudessem lembrá-lo, principalmente do frenesi das grandes recepções. Para sublimar a grande perda refugiou-se no consultório, cada vez mais solitária.
À beira de um ataque nervoso, compreendeu que havia chegado ao limite; precisava cuidar de si própria. Para isso refugiara-se no paradisíaco balneário de Pedra Linda onde conhecera Antero, também fazendeiro e viúvo. Amoroso e extrovertido, logo a conquistara.
Percebeu sua afeição por Clara e resolveu compartilhar da árdua missão a que ele se propusera, recuperar a sanidade perdida de Clara, a neta daquele a quem recordava como o seu melhor amigo.



XIV Capítulo
CHOQUE


Amanhecia. Todos dormiam no sobrado, exceto Clara, desperta desde os primeiros clarões da madrugada. Abrira a janela de seu quarto e debruçara-se no peitoril. A camisola de dormir emprestava-lhe encantadora, frágil aparência. Aspirou com gosto o ar puro matinal, admirando o belo panorama.
Naquele instante, o ruído de dois veículos que se aproximavam pela colina, ainda parcialmente encoberta pelo nevoeiro, prenderam-na à janela.
Entre os recém-chegados, notou o homem corpulento. Em sua memória conturbada despontou uma tênue, vaga lembrança daquela figura viril que acabara de desembarcar no pátio do sobrado.
Num impulso repentino, Clara abandonou seu posto de observação e correu furiosamente para fora do quarto. Desvairada, venceu os degraus disposta a deter a entrada do intruso. Antes de completar o gesto de abrir a porta, Eugênio viu-a escancarar-se e no seu limiar aparecer a mocinha, envolta em sua camisola diáfana.
Atrás dele, o rosto de Tomé tornara-se cor de cinza. Nos cantos da boca o mesmo riso zombeteiro, e por breves instantes, os grandes olhos azuis de Clara permaneceram dilatados, fixos sobre o causador de sua inquietude.
Tomada de pavor, escapuliu ensandecida ladeira abaixo como se mil demônios a perseguissem. Atônitos, eles ficaram à porta como petrificados enquanto ela fugia com o rosto em chamas, em desenfreada correria.
Tudo parecia embaralhar-se em sua mente. Ouvia a voz de seu pai que repetia em tom desesperado: “Depressa Clara, fuja!”
Devagarzinho, como uma folha abatida pelo vento escorregou para o chão.
Ficou apenas pouco tempo sobre as pedras do caminho. Eugênio a soergueu nos braços e retomou a subida, acompanhado de perto pelo cunhado cabisbaixo. Perplexa ao vê-los chegar com a menina desmaiada, sem palavras Santana os acompanhou. Antes que a governanta se refizesse do espanto e pedisse explicações sobre o ocorrido, Eugênio ordenou, a voz angustiada:
- Vamos acomodá-la em seu quarto. Precisamos avisar imediatamente o Professor Raposo.
Naquele exato momento, Antero descia os degraus com o pequeno Luciano nos braços. Às suas indagações, Tomé respondeu em tom irônico:
- É mais um chilique da doidinha. Tão logo a deixe em sua cama, Eugênio vai providenciar para devolvê-la ao hospício, de onde o senhor a retirou. Francamente, Senhor Antero, está vendo só o resultado de suas boas intenções?
Ao sentir-se recriminado, Antero reprimiu a muito custo sua contrariedade. Desprezou o comentário do genro e preocupou-se em devolver o filho à Marisa, que exibia o rosto banhado de lágrimas. Passou por ela cabisbaixo.
Acima de tudo, agora era preciso saber o motivo do estranho desmaio de Clara, pensou Antero.
Elisabeth havia escutado a recriminação de Tomé. Aproximou-se, sem dizer nada entrelaçou os dedos aos de Antero enquanto subiam os degraus em silêncio, rumo ao quarto de Clara.
Quando eles se afastaram, Fabíola olhou para o rosto impassível de Tomé e não se conteve:
- Pedirás desculpas ao meu pai pelo infeliz gracejo, não é? Por que tinhas de criticá-lo? – reclamou.
O marido deu de ombros, esboçou um sorriso de desprezo e afastou-se para ir à copa onde pretendia satisfazer sua fome.
Fabíola continuou a observá-lo, desapontada, depois voltou para o andar superior para reunir-se aos demais. Ao entrar no quarto de Clara, viu Santana segurando-lhe a mão e repetindo em tom carinhoso:
- Afinal você abriu os olhos! Esqueceu de alimentar-se, Clara? Foi passear em roupa de dormir, está vendo o susto enorme que nos pregou?
Clara circunvagou o olhar pelos semblantes aflitos em torno de sua cama, e suplicou em voz quase inaudível:
- Não deixem aquele homem me matar. Não deixem... – e desmaiou novamente.
Passaram-se dois meses desde o acontecido.
Durante os primeiros dias de seu regresso à clínica, Clara delirou dia e noite. Pálida, inconsciente, acometida de intensa febre, pairava entre a vida e a morte.
Para se manter ao seu lado, Elisabeth aceitou o cargo de terapeuta auxiliar de Claudemir Raposo, revezando-se no plantão à cabeceira de Clara, quando as mulheres da família Marcolino iam descansar.
Duas semanas depois do acontecido, Clara acordou sem os sintomas de febre, circunvagou o olhar pelo quarto e tocou no braço da mulher que cochilava ao seu lado.
Feliz, aliviada com a limpidez expressa em seus olhos, ainda incrédula, Lígia examinou atentamente o seu rosto emagrecido. Para certificar-se, perguntou cautelosa:
- Clara, tu me reconheces?
Ela a encarou longamente, antes de perguntar:
- Por que estou aqui? Sinto muita sede, quero água.
- Tenho de buscar lá fora. Voltarei num instante – avisou Lígia.
No quarto vizinho, entre um cochilo e outro, Elisabeth esperava o dia amanhecer para substituir Lígia, na vigília permanente ao lado de Clara.
Viu quando a mulher passou apressada em direção à copa. Lançou-lhe um olhar interrogativo, Lígia estacou a meio caminho, venceu a indecisão e precipitou-se em sua direção para abraçá-la, o rosto cheio de alegria:
- Ela falou comigo sem delirar, parece um sonho! Pediu-me água.
Contagiada por sua euforia, Elisabeth retribuiu o abraço e replicou com um sorriso nos lábios:
- Que ótima notícia! Aproveite este bom momento e vá descansar um pouco. Está na hora de medicá-la, deixe que me encarrego de levar água para nossa menina, está bem?
Apesar de tantas horas sem dormir, Lígia declinou a proposta e fez questão de acompanhá-la ao quarto.
Ao vê-las entrar, Clara ergueu uma das mãos para tocar suavemente no rosto de Elisabeth.
Bebeu com avidez a água, em seguida perguntou, recostando-se ao travesseiro:
- Que lugar é este? Por que estou aqui?
O coração em sobressalto, Lígia pensou na melhor forma de contar-lhe a verdade. Antes que o fizesse, Elizabeth prendeu as mãos de Clara entre as suas e explicou em tom sereno:
- Trouxemos você para descansar aqui, mas, não se preocupe. É um lugar seguro e nós ficaremos com você o tempo que for necessário. Agora, tente descansar mais um pouco, enquanto vou buscar um comprimido para ajudá-la a voltar a dormir.
Enquanto ela falava, Clara examinava atentamente em torno. Suspirou resignada e fechou os olhos:
- Estou tão cansada... Fique comigo, Elisabeth. Tenho medo de ficar só.
Antes de adormecer por completo sob o efeito da medicação, ouviu a resposta:
- Não tenha medo, Clara. Continuarei ao seu lado.
Ela reabriu os olhos e perguntou:
- Quanto tempo passou desde a morte de meu pai? Ouço a voz dele o tempo inteiro, aqui dentro... - apontou a cabeça.
Subitamente adormeceu. A psicóloga aproximou-se mais do leito e assegurou em tom suave:
– Depois conversaremos. Estarei aqui, velando seu sono.
Pouco tempo depois, o Professor Raposo entrou no quarto para sua ronda matinal. Cumprimentou as duas mulheres e chamou Elisabeth para conversarem na saleta. Ouviu atentamente o seu relato, antes de sugerir:
- Vamos esperar mais um pouco antes de modificar o procedimento. Faremos isso se os sinais de lucidez permanecerem, concorda?
- Estou de pleno acordo – respondeu Elisabeth – Se tudo correr bem, como espero, continuaremos com as sessões de hipnose, do ponto interrompido quando ela foi para o sobrado.
- Tomara que dê tudo certo.
Quando Lígia aproximou-se da porta entreaberta, abatida e cheia de olheiras, Professor Raposo aconselhou-a a ir descansar em casa. Apesar de todos protestos, ela acabou por acatar s conselhos do psicanalista, cogitando inteirar o restante da família sobre as melhoras no estado de Clara.
XV Capítulo
DISCUSSÃO



Depois que a ambulância que transportava Clara foi embora, esvaziados todos estímulos para levar adiante os planos festivos daquela noite, completamente desolados todos começaram a recolher-se ao próprio quarto. Dificilmente poderiam conciliar o sono com facilidade, depois da cena constrangedora.
Mais uma vez, Clara fora removida para o asilo psiquiátrico, único recurso capaz de auxiliá-la a recobrar a sanidade perdida. De mãos dadas com a mulher, Eugênio continuou debruçado à janela do salão, mergulhado num turbilhão de pensamentos. Acabrunhado, sem nenhuma disposição para dormir e sem coragem de olhar para o rosto transtornado de Marisa.
Com o vento entre os cabelos e o ruído de ondas encapeladas, eles esperavam reaver a tranquilidade perdida. Repartiam com Antero aquele instante mágico de absoluta calmaria, interrompido bruscamente por acalorada discussão entre Fabíola e Tomé, há tempos recolhidos ao quarto, no andar superior.
Ouvintes involuntários, cada vez mais constrangidos com a troca de agressões, eles se entreolharam.
Sem controlar-se por mais tempo, Antero venceu a escada, abriu a porta do quarto sem bater, e deparou-se com a filha em prantos e o genro fora de si.
Sua intenção de reconciliá-los caiu por terra quando Tomé o saudou com profundo sarcasmo:
- Eis o meu sogrinho, o mais santo dos homens. Ninguém o chamou, mas, agora que está aqui, veja o estado lastimável de sua filha. Vamos, coragem, admire o resultado de sua obra!
Envergonhada diante do pai, Fabíola correu até a pia para lavar o rosto, ansiosa para apagar vestígios de choro:
- Perdoe-me por esse transtorno, papai. Daqui a pouco estarei bem. Brigamos porque Tomé exagerou um pouco nos drinques. Farei o possível para que isso não se repita.
- Você também está bêbada, por que não confessa? – gritou Tomé.
Atento à recepção após a interferência de seu pai, Eugênio chegou a tempo de escutar a explicação de Fabíola. Diante dele, o cunhado mudou de atitude, correu a sentar na beira da cama e acendeu raivosamente um cigarro com as mãos trêmulas.
Fingiu nada perceber. Respirou fundo, cobriu os ombros da irmã chorosa com o braço e tentou consolá-la:
- Vamos, acalma-te. Isso acontece nas melhores famílias, amanhã o sol nascerá do mesmo jeito, e a nossa vida entrará nos eixos. Diga-me, Tomé: qual o verdadeiro motivo desta discussão?
O interpelado encolheu os ombros, fingiu-se de surdo, macambúzio, e permaneceu impassível enquanto expelia contínuas baforadas.
Para ficar a sós com ele, Eugênio convenceu Fabíola a retirar-se do quarto em companhia de Antero. Apesar de relutante, sua irmã obedeceu. Mesmo assim Tomé continuou por algum tempo cabisbaixo, intimidado.
Para deixá-lo mais à vontade, Eugênio caminhou pelo quarto, foi até a janela e fechou-a. Ainda esperou longos minutos, até o cunhado tomar coragem e começar a lamuriar-se:
- Fabíola tem razão. Sou um pulha. Bebi demais e perdi a compostura, estou arrasado. Mas, ela gosta de me provocar...
- Dispenso os detalhes. Diga-me apenas por que estava tão furioso com ela? Por haver tomado alguns tragos além da conta? – insistiu Eugênio.
- Não. Detesto admitir minha fraqueza, todas as vezes que Ricardo se aproxima dela, fico fora de mim. Aquele ordinário vive cercando minha mulher. Perco a cabeça e a noção de tudo, o meu raciocínio desaparece. Sou capaz de cometer uma asneira.
Conciliador, Eugênio bateu-lhe no ombro:
- Aposto que nenhum dos dois sabe de seus ciúmes. Tente conversar com Fabíola, ela seria a última pessoa a provocá-lo. Acho que está se amofinando à toa, ela casou com você porque o ama. Ao invés de tomar umas e outras para agredi-la, procure tratá-la bem. Para começar, peça desculpas. Vamos, homem, tome juízo.
- Quando você fala Eugênio, tudo parece muito fácil. A realidade é bem diferente de suas teorias. Nossa vida agora é assim, vivemos nos agredindo a troco de nada. Acabo perdendo a cabeça – replicou Tomé cabisbaixo – Ainda bem que você é compreensivo e trata-me como irmão. É a única pessoa que posso confiar. Muito obrigado, cunhadinho.
- Prove-me sua gratidão – retrucou Eugênio - Procure compreender Fabíola, ela não merece os seus ciúmes. Por falar em confiança, por que exagerou na bebida? Para provocá-la? Há tempos, venho observando você: o que o atormenta, além dos ciúmes e da desconfiança no amor de Fabíola?
Suas perguntas repercutiram naquele coração há tanto tempo empedernido. Tomé escondeu o rosto entre as mãos e começou a chorar:
- Por favor, não brigue comigo, sou um infeliz – lamuriou-se, o corpanzil sacudido pelos soluços.
Desarmado, Eugênio espantou-se:
- Meu Deus, Tomé, como posso deixá-lo maltratar Fabíola?
- Você não entendeu coisa alguma – replicou Tomé – O meu grande erro foi ter voltado para cá, ao invés de sumir no mapa, ir para bem longe. Vocês foram bons demais. Acolheram-me, mostraram como é bom fazer parte de uma família. Os únicos culpados são este lugar e este sobrado desgraçado. Devia ser soterrado para sempre, tudo aqui cheira à maldição!
Assustado, Eugênio perguntou:
- Do que você está falando, perdeu o juízo?
O olhar ensandecido de Tomé o assustou mais ainda:
- Aquele foi o pior tempo de minha vida!
Divagou, sem prestar atenção à sua pergunta. Em seguida, Tomé levantou-se e caminhou em direção à janela. Escancarou-a e aspirou à brisa noturna tentando recuperar a lucidez perdida depois da excessiva bebedeira:
- Até o ar parece contaminado. Odeio este lugar com todas minhas forças. Amanhã cedo, vou embora de qualquer jeito. Se Fabíola quiser ficar, eu vou sozinho.
Debruçado à janela, cambaleou e teria caído. Eugênio o segurou a tempo.
Tomé procurou recompor-se. Ainda amparado ao braço de seu cunhado, sentou-se novamente e recomeçou a falar com voz rouca. Não parecia mais o mesmo homem. Cada vez mais surpreendido, Eugênio o ouviu dizer:
- Antes que me falte coragem ou enlouqueça também, como a sua enteada, preciso desabafar. Por favor, Eugênio, escute-me!
Passava de meia-noite quando eles finalmente desceram a escadaria. No salão, encontraram Antero que continuava insone, em companhia de Marisa e Fabíola ele esperava notícias da clínica para onde Clara voltara a ser internada. Elisabeth prometera telefonar ainda naquela noite.
Ao vê-los, Fabíola estranhou o rosto pálido de seu irmão e a postura cabisbaixa de Tomé. Levantou-se e caminhou ao encontro deles:
- Por que demoraram tanto? – indagou em tom impaciente.
No semblante de Eugênio percebeu o prenúncio de nova borrasca. Arrependida de sua pergunta evitou o olhar que Tomé lhe lançara, e voltou a sentar ao lado de seu pai à mesa.
Apoiado ao braço de Eugênio, o cunhado ocupou a cabeceira, circunvagando o olhar esgazeado por todos os rostos, antes de baixar a cabeça e prendê-la entre as mãos. Eugênio sentou-se ao seu lado e encorajou:
- Vamos, Tomé. Conte para eles.
Sempre de cabeça baixa, Tomé tomou coragem e principiou:
- Enquanto viveu, foi meu pai quem tomou conta daquele farol entre os abrolhos que lembram figuras femininas reclinadas, e avistamos das janelas deste sobrado. Nunca falei sobre isso, porque achei de pouca importância fazer qualquer referência a uma figura tão insignificante quanto era meu pai, a quem só conheci depois de adulto. Desde quando minha mãe contou-me a verdade sobre ele, ansiei por uma oportunidade para aproximar-me daquele farol e dar-me a conhecer. Cresci alimentando este sonho. Por coincidência, o navio onde prestava serviço um dia aportou aqui por estas bandas, com a devida permissão do comandante corri para este balneário.
Parou e respirou fundo, pronto a prosseguir sua narrativa. Antero movimentou o corpo para frente, trêmulo de raiva:
- Como se atreve a nos contar pormenores da sua vida num momento como este? Vê-se, ainda não curou a bebedeira. Por que não deixamos essa conversa para depois? Já tivemos emoções demais por hoje. Estou morto de cansaço. Preciso dormir e vou para o meu quarto. De lá, sairei somente quando Elisabeth telefonar.



XVI CAPÍTULO - REVELAÇÃO



Eugênio reagiu enfático:
- Prefiro que o senhor escute também, meu pai.
- Estou cansado, filho. A noite já foi bastante agitada – teimou Antero de semblante carregado.
Fez menção de levantar-se, Fabíola segurou-o carinhosamente pelo braço:
- Fique, papai. Deixe-o terminar, pode ser importante.
Tomé titubeou um instante, olhou para Eugênio, depois suplicou:
- Só por mais uns minutos, preciso da atenção de vocês. Se o senhor quiser retirar-se, fique à vontade, Senhor Antero.
Com um suspiro desalentado, Antero acomodou-se de novo na cadeira e esperou. Tomé baixou o olhar e continuou com a voz entrecortada:
- Como todo faroleiro, meu pai habituara-se a viver sozinho. Acolheu-me friamente, fez o possível para demonstrar quanto prezava a vida reclusa. Apesar de nomear-me seu filho e fingir alegria por me receber, estava doido para me ver pelas costas. Tive essa impressão desde o primeiro instante – interrompeu-se constrangido - Todo esse preâmbulo é para vocês entenderem como tudo começou. Frustrado e muito infeliz tratei de ir embora do farol e fui desafogar as mágoas no primeiro botequim. Quando notei aquele par de olhos azuis, já estava muito embriagado. Em todos portos existe uma centena delas, por qualquer trocado ou um prato de comida aceita nos acompanhar. Calculei errado, não estava sozinha. Mal lhe dirigi a palavra, armou-se a pior confusão. No meio de tantos estranhos furiosos, tive de me defender. Puxei o punhal e cravei no peito do mais exaltado.
- Deus do céu! – bradou Fabíola – Como pôde esconder-me essa história escabrosa?
- De todos nós, minha querida. Lembre-se, de todos nós – corrigiu Eugênio com grande desânimo.
Apesar de haver sido interrompido, determinado a ir até o final Tomé retomou a palavra:
- Completamente fora de mim fugi sem destino. Só pensava em não ser apanhado. A brisa fustigou-me o rosto, dissipou a confusão da embriaguez. Horrorizado, quase soltei um grito ao notar que ainda trazia nas mãos o punhal ensanguentado – interrompeu-se, sufocado pelos soluços.
Enquanto os soluços roucos agitavam aquele homem grandalhão e desajeitado, os seus ouvintes estarrecidos o fitavam, cada um lutando contra pensamentos desencontrados. Jamais poderiam supor o horrendo segredo de Tomé. Aquele dia lhes reservara inúmeras surpresas.
- Com todos os diabos! – gritou Antero pondo-se de pé, o rosto transtornado.
- Por que, Tomé? – murmurou Marisa com os olhos rasos d’água.
Para ela, desnecessário era ouvir o restante. Compreendera tudo, fora ele o culpado pela morte de Joca. Ele destruíra sua juventude, também a vida de sua pobre filha.
Tomé não suportou a força de seu desespero e replicou em tom defensivo:
- Por todos esses anos, repeti incansavelmente esta pergunta a mim mesmo: por quê? O que me levou a apunhalar aquele desconhecido? A raiva concentrada após a visita ao farol? Instinto animalesco? Ódio contra a mulher que me trouxe ao mundo e sua falta de vergonha? Nada serve para diminuir minha culpa. Tornei-me assassino... – reconheceu Tomé agora de olhos enxutos – Não espero perdão de ninguém. Procurei evitar aproximação demasiada com outras pessoas, deixei passar a data em que o navio zarparia e fiz alguns biscates para sobreviver. Quando ouvi casualmente que no sobrado faltavam bons cozinheiros, arrisquei a pele e procurei a governanta. Santana contratou-me na hora, sem mesmo perguntar de onde vinha, ou quem era eu.
Nenhum dos presentes animou-se a falar, e durante muito tempo pairou constrangedor silêncio.
Taciturno, Antero o deixara terminar enquanto resistia ao ímpeto de esbofeteá-lo. Estava convicto que ele dissimulara a verdadeira personalidade para infiltrar-se cada vez mais entre eles, ganhar estima e confiança, até conquistar sua filha e se tornar membro da família.
- Em resumo, você deveria estar cumprindo pena atrás das grades, Tomé – explodiu – Em vez disso, todo este tempo escondeu a verdade até se tornar o marido de minha única filha. Você é um ser repulsivo!
A intensidade de suas palavras fez Tomé tremer de raiva. Desviou o olhar antes de responder:
- O senhor tem bons motivos para odiar-me – reconheceu em tom irônico - Era apenas um miserável sem eira nem beira quando comecei a trabalhar para vocês. Embora nada possa apagar o meu passado, procurei dar sempre o melhor de mim, e durante todos os anos enquanto fui seu empregado, nunca ouvi queixas.
- Como se atreve? – interveio Fabíola, indignada por haver descoberto a verdade tarde demais.
Abraçou carinhosamente o pai e provocou Tomé, o olhar reluzente de raiva:
- Onde você escondeu o punhal que matou o pai de Clara?
Tomé compreendeu que ela nunca o perdoaria e sussurrou, voltando a esconder o rosto entre as mãos:
- A proximidade daquela arma só trouxe pesadelos. Depois de procurar alternativas onde escondê-la, decidi enterrá-la aqui, neste sobrado.
- O quê? Em que lugar, seu infeliz? – gritou ela fora de si.
Antero tentou acalmá-la, em vão. Completamente descontrolada, Fabíola esbofeteou Tomé e abandonou o recinto para esconder-se no quarto.
Antero meneou a cabeça tristemente. Acudiu-lhe à lembrança o seu permanente entusiasmo durante o noivado. A filha o fizera largar tudo para cuidar da restauração do sobrado, repleto de doces lembranças do tempo em que Rosana vivia. A impaciência de Tomé o impedira de realizar ali a festa de seu casamento. Com esforço inaudito, lutou contra a ira, afastou os pensamentos amargos.
Sua única filha precisava de apoio, somente isso importava.
Durante a escavação no local onde quisera substituir antigos azulejos, os operários haviam descoberto a velha mochila e a trouxeram para mostrar-lhe. Quase a atirara no lixo, entretanto, mudara de ideia e a revirara. Entre as dobras de alguns trapos, encontrara o belo punhal de punho em osso entalhado. Guardara-o cuidadosamente numa gaveta de sua escrivaninha e nunca mais pensara no assunto.
Estremeceu ante a evidência. A arma de Tomé, que servira para tirar a vida de Joca estava em seu poder. Precisava agir cautelosamente para que ninguém mais soubesse, até descobrir as reais intenções de Fabíola sobre o futuro ao lado de Tomé, se ela alimentava ainda esperanças quanto ao seu casamento.
XVII Capítulo - JUIZ SIMIONE

Somente agora, Eugênio podia compreender porque Tomé estava sempre disposto a desprezar Clara. Temia ser reconhecido antes de conseguir unir-se à sua irmã e introduzir-se legalmente na família. Fizera tudo de caso pensado. Aproveitara todas oportunidades para reforçar quanto sua enteada parecia louca e perigosa, para mantê-la afastada.
A embriaguez excessiva destruíra suas defesas e Tomé deixara cair a máscara. Naquele momento, ouvi-lo suplicar provocou-lhe repugnância.
- Minha vida acabou. Sem o perdão de vocês, só me restará partir. Ficarão livres de mim de uma vez por todas.
Quando se calou, Antero reagiu em tom colérico:
- Não o deixaremos partir. Caso tente fugir, você não irá muito longe. Colocarei a polícia do país todo em seu encalço. E o senhor não destruiu somente sua vida, lembre-se de Fabíola, de Clara e principalmente de Joca.
- Por que me odeia tanto, Senhor Antero?
Em tom apaziguador Eugênio interferiu:
- Tenha calma, papai.
Em seguida voltou-se para o cunhado:
- Só lhe resta uma opção, Tomé: entregar-se, confessar tudo à polícia como acabou de fazer para nós. Pense em Clara. Ela não está louca, agora estou certo disso. É tão jovem e tão linda! Sei que é horrível de ouvir, mas, é a única forma de reparar o mal que lhe fez: contar-lhe a verdade. Ficar frente a frente e ajudá-la a lembrar.
- Está certo como isso pode ajudá-la? – indagou Tomé, ainda relutante.
- Teremos de experimentar para descobrir. Não vejo alternativa e o Professor Raposo poderá nos orientar sobre o melhor modo de fazer Clara lidar com a terrível verdade – rebateu Eugênio – Conforme forem os resultados, procuraremos compensá-lo. Com bons advogados, acredito que é possível você alegar legítima defesa.
O olhar surpreso de Marisa o deteve:
- Nada nos faria mais felizes do que a cura de nossa menina. Concorda comigo, meu amor? – emendou, ressabiado.
Até aquele instante, Marisa evitara encarar o assassino de Joca, e nem agora se sentia disposta a fazê-lo. Ainda fitando um ponto distante, limitou-se a acenar de modo afirmativo. Depois daquela noite tumultuada, estava exausta. Já era madrugada. Lembrou a Eugênio o filho adormecido no andar de cima e propôs:
- Quem sabe, algumas horas de sono sirvam para clarear nossas mentes? Evitará que tomemos decisões precipitadas. Vamos para nosso quarto, meu querido, precisamos descansar.
Como em resposta, o telefone soou no escritório. Antero perdeu o ar ensimesmado e pulou da cadeira com uma exclamação de ânimo.
No escritório, ouviu as notícias de Elisabeth sobre Clara. Depois de sofrer um ataque de fúria ao descobrir que estava novamente na Clínica, naquele momento ela dormia sob efeito de sedativos.
Antero aproveitou o raro instante de solidão e realizou providenciais contatos. Algum tempo depois, quando ele retornou ao salão de semblante tranquilo e peito desafogado, ninguém percebeu, exceto Eugênio que o conhecia bastante.
Enquanto Tomé acalentava a secreta esperança de obter o perdão de Fabíola, único caminho para modificar a decisão do sogro de encaminhá-lo à justiça, Eugênio sabia que em breve os amigos de seu pai haveriam de aparecer, para ajudá-lo a fazer exatamente o contrário.

Como ele previra, mal o dia clareou, Antero e o juiz Pascoal Simione, que chegara ao sobrado durante a madrugada, trancaram-se no escritório para conversar sobre os acontecimentos da noite anterior.
Pascoal Simione era um homem de aparência tranquila e bonachona. Ouviu o arrazoado entusiástico de Antero, meneando a cabeça de vez em quando em sinal de entendimento, ou pigarreando. Quando o velho amigo calou-se, durante algum tempo Pascoal Simione permaneceu silencioso, percorrendo o olhar pelo aposento, aparentando grande interesse em cada detalhe dos móveis.
Embora da mesma idade, apesar de possuir elevada estatura e corpo delgado, por levar vida sedentária Pascoal Simione mostrava sinais evidentes do tempo, enquanto Antero Marcolino, habituado à vida ao ar livre exibia um aspecto jovial.
Com um suspiro resignado, Simione descruzou os braços e começou a falar em voz pausada:
- Não alimente falsas ilusões, meu amigo. Eugênio está certo, o seu genro pode alegar legítima defesa. Com agravante para reunir provas testemunhais de como tudo aconteceu. Transcorreu tempo excessivo. Talvez esse crime já tenha caído em prescrição.
- Deixe de rodeios, Pascoal, e fale claramente. O seu palavreado não esclarece muita coisa – reclamou Antero – Bote as cartas na mesa: quais as chances de condená-lo pelo que fez?
- Francamente, se estivesse no seu lugar deixaria tudo como está – opinou Simione cheio de convicção – Ao fugir do flagrante, o marinheiro Tomé se tornou também um desertor. E como homem da lei , eu devo analisar os prós e contras. Ele nunca mais cometeu nenhuma outra infração, tornou-se trabalhador, conseguiu conquistar sua filha e todos vocês. Qualquer juiz notaria que Tomé manteve um padrão de comportamento digno e correto. Veja bem, estou analisando os fatos como juiz, com isenção de ânimo. Aconselho-o a entregar o destino de Tomé nas mãos de sua filha. Se ela quiser denunciá-lo, ele responderá pelo que fez.
- Neste caso, ele seria preso? – quis certificar-se Antero, revoltado com tudo o que ouvia.
- Sim, creio que por pouco tempo. Com um bom advogado, logo estaria em liberdade provisória – afirmou Simione com um sorriso compreensivo - Como réu primário e endereço fixo, Tomé terá direito de responder ao processo em liberdade, que pode se arrastar por muitos anos.
Antero coçou a barba rala, pensativo. Por ora, nada mais lhe restava fazer, senão convidar Pascoal Simione para tomarem café juntos. Ao entrarem na copa, viram que apenas Fabíola e Eugênio estavam acordados.
- Onde está o seu marido? – indagou Antero, depois de apresentar o amigo aos filhos.
Fabíola resmungou de má vontade:
- Foi dormir no quarto de hóspedes. Espero que esta seja a derradeira noite que ficaremos sob o mesmo teto. Mas, vamos ao que interessa. Afinal, o que vocês decidiram?

XVIII Capítulo
CONFIDENTE

- Deixo a decisão em suas mãos – respondeu o pai – Pascoal me deu todas as coordenadas, agora, dependerá somente de você.
Ela o olhou com espanto, e voltou-se para Pascoal Simione, a quem conhecia desde criança, com ar incrédulo.
Pascoal Simione esboçou um sorriso e afirmou:
- Não olhe para mim. Como já expliquei ao Antero, aconteceram delitos de natureza muito grave. Ao deixar o local onde atentou contra a vida de outra pessoa, o seu marido escapou do flagrante, porém cometeu outro delito, abandonou o serviço militar. A atenuante é que tudo aconteceu há muitos anos atrás. Sem testemunhas e sem provas, pouca coisa resta para incriminá-lo. Como ele se tornou membro da família, sugeri que vocês deixassem tudo como está.
Fabíola tamborilou sobre a mesa, à procura de palavras para exprimir sua indignação:
- Tomé é assassino e deve pagar por isso. Clara era somente uma criança quando ele matou o seu pai – exclamou pausadamente.
O irmão, que se abstivera até aquele momento de manifestar-se resolveu chamá-la à razão:
- Por favor, minha querida, procure encarar os fatos com menos revolta! – aconselhou brandamente – Tente recordar os bons momentos compartilhados com Tomé, e não esqueça, ele ainda é o homem a quem escolheu para esposo. Não se apaga o amor que sentimos por alguém, assim, da noite para o dia.
- Poupe-me, Eugênio. Como é possível pedir-me tal coisa? Súbito, descobri estar casada com um criminoso. Em que se baseia para defendê-lo? - protestou ela.
- Não o defendo. Ele próprio confessou tudo, senão, continuaríamos a ignorar - rebateu o irmão - Já disse e mantenho: tentaria ajudá-lo a colocar todo esse passado em pratos limpos, se ele não tivesse provocado a insanidade de Clara.
- Deixe-a decidir, meu filho – pediu Antero – Nenhum de nós pode resolver assunto tão grave. Temos de cumprir o que a lei determina, ela é quem decidirá. O meu grande amigo e conselheiro já nos orientou. Só nos resta, agora, respeitar a decisão de Fabíola, a quem compete descobrir se vale ou não a pena continuar a dividir sua intimidade com Tomé. Farei tudo o que estiver ao alcance para torná-la menos infeliz.
- Nunca mais será a mesma coisa, papai... – balbuciou Fabíola de olhos marejados.
Antero sentiu a frieza de suas mãos e comoveu-se:
- Minha filha, reflita o tempo que for você quiser. Terei paciência para esperar.

Quando finalmente o levaram, Fabíola assistiu a tudo com os olhos enxutos, debruçada ao parapeito da janela de seu quarto, enquanto a luz do farol varria as águas do mar à pouca distância da colina. Desejou ardentemente que ele recebesse a punição merecida pelo crime cometido e por ter conseguido enganá-la. Ao mesmo tempo, lutava desesperadamente contra o coração ainda repleto de amor, de lembranças recentes. Precisava esquecê-lo o mais breve possível. Não mediria esforços até libertar-se dos laços que os prendiam. Haveria de conseguir.
Atirou-se sobre a cama, ali permaneceu de olhos fixos no teto lutando contra as recordações felizes. Arrasada pelo sofrimento, deixou o quarto, desceu a colina e caminhou ao acaso pela orla durante muito tempo até chegar ao hotel Marcolino.
Fabíola surpreendeu-se ao perceber onde estava. Ricardo almoçava entre os veranistas; tentou esconder-lhe o drama interior, inutilmente. Ele notara sua aparência deplorável e as olheiras de quem ainda não pregara olhos desde a noite passada. Quando o convidou a fazer-lhe companhia, aceitou de imediato; ela precisava desesperadamente de alguém para ouvi-la. Enquanto caminhavam, deixou-a desabafar:
- Ainda tenho dificuldades para acreditar que a minha vida subitamente entornou de cabeça para baixo. Sinto-me tão confusa! Por que fui tão idiota, tão cega? Odeio-me por não haver descoberto há mais tempo toda hipocrisia de Tomé – recriminou-se entre lágrimas.
Condoído, Ricardo consolou-a:
- É complicado avaliar sentimentos e reações de outra pessoa, Fabíola. Pior ainda é dar conselhos. Entretanto, vou arriscar: seja qual for sua decisão, tome-a e siga em frente sem remorsos. Nesse momento, precisa voltar para casa, acalmar o seu pai que há esta hora deve estar aflito com sua ausência, e tentar dormir um pouco. Quer saber? Nenhum canalha merece este sofrimento todo. Eu, você, qualquer pessoa se deixaria enganar facilmente por Tomé. Até ontem, todo mundo achava que o conhecia e o admirava. Temos de admitir uma coisa, o seu talento de ator nato. Representou muito bem o papel de homem apaixonado e indispensável.
Fabíola espantou-se com sua maneira de encarar os fatos, reconheceu que isso lhe agradava e respondeu:
- Papai deixou-me resolver se devíamos entregá-lo à polícia. Pode me chamar de imbecil, acredite, preferia ter ficado de fora. Ainda relutei em fazê-lo e, pior, quando vieram buscá-lo sofri demais, senti remorsos, piedade...
- Agiu como qualquer pessoa sensível e honesta – protestou Ricardo – Eu sei que não é o momento, mas, observe a minha vida. Pareço tão equilibrado, resolvido, no entanto, os remorsos também incomodaram bastante num certo período de minha vida. Quando Marisa abandonou a menina, foi por imposição minha. Atualmente, você pode avaliar quantos remorsos eu sinto por isso? Detestava aquele infeliz que abusou de minha filha, e por tabela, rejeitei também a criança. Agarrei a chance de mostrar poder, praticamente obriguei Marisa a abandoná-la. Como vê, todo mundo carrega alguns grilos incômodos.
Sem que ela percebesse, haviam chegado ao sobrado. Ricardo seguiu-a até o salão onde se encontrava o restante da família, reunida para o café após o almoço. Feliz por vê-lo em companhia da filha, Antero lhe ofereceu um veículo para voltar ao hotel, em seguida acompanhou a filha até o quarto.

XIX Capítulo
TRÊS ANOS DEPOIS



Enquanto esperava a decisão da justiça em liberdade provisória, por insistência de Eugênio, Tomé começou a frequentar a clínica onde Clara fora internada. Embora o Professor Raposo estivesse familiarizado com os detalhes do caso ouvidos durante as sessões de hipnose, considerava importante que a menina conseguisse juntar o passado ao presente, e acreditava que isso seria possível com as visitas de Tomé. Devagar, em sua presença, Clara acabaria por perder o medo de lembrar.
No momento oportuno ela conseguiria fazê-lo, acreditavam Eugênio e Claudemir Raposo. Desde quando se restabelecera do estado febril, pouco a pouco Clara mostrava novos sinais de lucidez; em breve poderia retornar ao balneário onde tudo acontecera.
Elisabeth temia as reações da menina diante de Tomé, preferia esperar mais um pouco. Ao expor os seus receios ao Professor Raposo, este afirmara que ela havia se afeiçoado demais à paciente, e precisava separar os sentimentos. Para tranquilizá-la, no entanto, continuou a fazer companhia a Clara durante as visitas de Tomé.
Fabíola e Ricardo pararam à sombra de uma árvore do pátio da clínica para descansar alguns instantes, e entreolharam-se felizes. Como era bom saber que os males de Clara começavam a fazer parte do passado, graças a eles estavam juntos.
Haviam reconhecido Tomé, que caminhava em sentido contrário. Ao vê-la em companhia de Ricardo, os músculos da face do ex-marido contraíram-se, conseguiu disfarçar, ao chegar mais perto ostentava largo sorriso:
- Tiveram sorte de chegar a esta hora. Clara deverá sair a qualquer momento – comentou em tom jocoso.
Eles permaneceram de mãos entrelaçadas, indiferentes ao que pudesse pensar. A brisa repentina percorreu-lhes os cabelos; trocaram novos olhares e retomaram a caminhada em passos rápidos, deixando-o para trás.
Graças à tese de legítima defesa, Tomé livrara-se da prisão. Em contrapartida, tivera de aceitar o processo de divórcio com todas as cláusulas, Fabíola se valera da justificativa de falsidade ideológica.
Tomé sentiu o sangue palpitar nas têmporas; como se não fosse bastante, testemunhava sua ex-mulher esquecê-lo rapidamente nos braços de Ricardo. A relação deles pareceu-lhe tranquila, feita de muita cumplicidade.
Da janela da clínica, Lígia também notara a chegada do novo casal e o enlevado olhar de seu ex-marido. Muito a contragosto, reconheceu que os cabelos grisalhos tornaram Ricardo mais atraente.
Mais uma vez, ela recordou o dia em que cedera aos apelos de Marisa e aceitara visitá-lo. Tarde demais, ele a surpreendera com os papeis do divórcio. Confessara-lhe estar envolvido com outra pessoa e precisava da liberdade para casar novamente. Disposta a evitá-los, Lígia despediu-se de Elisabeth e retirou-se antes que a vissem.
A psicóloga acompanharia Clara em seu retorno ao sobrado onde Antero as esperava, cheio de planos. Queria festejar a volta das duas, sob o pretexto de juntar a família.
De comum acordo com os filhos, Antero decidira compensar Clara por tantos anos de sofrimento. Para transformá-la em sócia majoritária do Hotel Marcolino, ele transferira as próprias ações. Tão logo atingisse a maioridade, por direito Clara poderia comandá-lo.
Ao balneário acorria gente de todos os recantos. A intensa procura provocou o surgimento de outras pousadas e hotéis; rapidamente o Hotel Marcolino adaptou-se aos concorrentes, estava sempre lotado. Os precavidos faziam reservas antecipadas.
Dispostos a manter o padrão elevado, Ricardo e Fabíola adotaram deliciosas viagens pela costa em graciosos catamarans, muito apreciadas pelos hóspedes.
Eugênio continuou a administrar as fazendas, feliz por sua irmã haver descoberto, após o malogrado casamento, o verdadeiro homem de sua vida. Com Ricardo ela continuara a partilhar a direção do hotel Marcolino, até Clara demonstrar condições e vontade para fazê-lo.
De volta ao sobrado, cada vez mais curiosa para saber os acontecimentos que haviam ocorrido durante sua suposta loucura, Clara mostrava-se fascinada pela personalidade extrovertida de seu pai enquanto era jovem, antes de se tornar órfão, e cada vez mais pedia detalhes de sua história.
Para conquistá-la, Marisa desdobrou-se em paciência e afeto. Nos serões após o jantar, tentava comportar-se como velha amiga, fazia-lhe confidências. Apesar de todos esforços, percebia um retraimento difícil de superar, por conta de tantos anos de abandono.
Continuava a culpar-se, com os olhos rasos d’água insistia na mesma tecla para que compreendesse os motivos por que a havia internado na Clínica Psiquiátrica. Satisfazia todas as perguntas de Clara sobre sua juventude, até que adormecesse ao som de sua voz.
Os pesadelos haviam rareado. Vez por outra, Clara lembrava a humilde companheira do pai, ou as viagens de barco em sua companhia depois que Regina morrera.
Na manhã seguinte à festa tantas vezes adiada, Eugênio e Marisa ultimavam os preparativos para voltar à fazenda quando perceberam sua ausência. Souberam por Santana: Clara descera a colina enquanto eles ainda dormiam. Inquieto, Eugênio resolveu procurá-la na praia.
Caminhou devagar na esperança de vê-la surgir a qualquer momento. Pouco a pouco o sol tornou-se abrasante, e a expectativa transformou-se em ansiedade. Decidiu andar em direção contrária até alcançar a Vila de Pescadores, quem sabe, ela voltara ao lugar onde passara a infância em companhia de Joca?
Quando entrou na vila, percebeu os olhares curiosos de mulheres e crianças à sua passagem. Às suas perguntas, uma criança respondeu afirmativamente, Clara se encontrava entre as ruínas do casebre onde havia morado. Encontrou-a sentada sobre as ruínas, o rosto orvalhado pelo pranto.


XX Capítulo
ATENTADO



Chamou-a docemente:
- Vem comigo, Clara. Estão à nossa espera, vamos para casa.
Como se não o tivesse escutado, ela permaneceu imóvel. Eugênio procurou acomodar-se ao seu lado e esperou. Finalmente a menina voltou-se para ele e suspirou:
- Não quero voltar ainda. Uma força misteriosa me atraiu para cá, tive de vir. Preciso ficar mais um pouco para conviver com as velhas lembranças, entende?
Ao vê-la tão disposta a juntar os pedaços de seu passado, Eugênio ajudou-a levantar-se:
- Há tempo bastante para fazer isso. Por ora, esqueça a tristeza. Vamos sair daqui, venha!
Clara aquiesceu e fizeram o caminho de volta pelas estreitas ruas da vila até encontrarem o carro que Marisa dirigira pelas vielas estreitas até encontrá-los. Ao ver o pai, Luciano começou a pular de alegria.
Regressaram ao sobrado onde Clara desejava ficar ainda por algum tempo, até sentir-se mais segura do que deveria fazer de seu futuro.
Continuou agitando os braços em sinal de despedida até o veículo desaparecer na estrada levando Eugênio, Marisa e Luciano para a fazenda Consolação.
Os primeiros raios de sol penetravam pelas janelas do salão que Santana deixara abertas quando Clara entrou.
No grande sofá, ela deparou-se com Antero, a cabeça reclinada em direção ao peito e o punhal de cabo entalhado em osso encravado no tórax. Desnorteada, circunvagou o olhar aterrorizado em torno e começou a gritar:
- Socorro! Elisabeth, Santana, socorro!
Sem obter respostas, tentou fugir, mas foi contida por um rude golpe de braço do intruso que estivera à sua espreita, escondido atrás da porta.
Clara lutou bravamente para desvencilhar-se. Vencida, foi arrastada até o sofá e horrorizada assistiu a arma ser arrancada friamente do ferimento de Antero, depois, fechada entre seus dedos.
- Agora, ninguém acreditará em você, sua doida! - escarneceu a voz masculina ao seu ouvido. Antes de escapulir, o criminoso empurrou-a com violência. Clara desequilibrou-se e caiu, batendo a cabeça contra uma poltrona.
As duas mulheres chegaram ao mesmo tempo. Estupefatas diante da cena dantesca, o homem inerte e a menina caída sobre o tapete, elas ficaram paralisadas de espanto. Elisabeth recuperou o autodomínio primeiro e correu para socorrer Antero. Santana preocupou-se em ajudar Clara a levantar-se, abraçou-a com ternura, abriu seus dedos crispados e jeitosamente retirou o punhal:
- Não tenha medo, querida. Agora eu ficarei com isso. Estamos aqui para ajudá-la, entendeu?
Ao olhar o seu patrão ensanguentado, a velha governanta conteve o grito prestes a escapar de sua garganta.
Segurou Clara pelo braço, mas, com um safanão ela desvencilhou-se e escapuliu em louca disparada.
Fez menção de segui-la, a voz embargada de Elisabeth a deteve:
- Deixe-a em paz, Santana, temos de socorrer Antero. Deus queira que ainda esteja em tempo. Corra, telefone para os seus filhos. Depressa!
Menos de meia hora depois, Fabíola entrou esbaforida. Percorreu os cômodos vazios, somente quando chegou na cozinha encontrou dois empregados que a esperavam. Eles haviam ajudado a acomodar Antero no carro de Elisabeth, antes que ela partisse em direção ao hospital mais próximo.
Em seguida, foi até o escritório de seu pai, onde Santana vasculhava nervosamente as gavetas da escrivaninha. Ao ver Fabíola, exclamou com aflição:
- Eu conheço Clara desde pequena, não acredito que ela seja capaz de ato tão violento. Apesar das evidências, ela não faria mal a uma mosca.
Fabíola compreendeu sua angústia e perguntou com delicadeza
- Por que não me conta tudo desde o princípio, Santana? Antes, diga- me: por que está esquadrinhando nessas gavetas?
- Estou verificando se o punhal que Senhor Antero guardava aqui é o mesmo que retirei da mão de Clara. Tenho certeza de que ela nunca entrou neste escritório.
Fabíola meneou a cabeça com um sorriso triste e disse:
- Você gosta muito daquela menina, não é mesmo? Mas, é preciso que sejamos realistas. Ela ficou sozinha depois da partida de Eugênio, Marisa e Luciano. Talvez tenha descoberto o punhal por puro acaso. Perturbada como é, qualquer um de nós poderia ter sido o seu alvo. Infelizmente, papai foi o escolhido – suspirou e arrematou – O que nos falta acontecer neste casarão repleto de surpresas?
Como o olhar distante, Santana divagou:
- Somente o senhor Antero conhece a verdade.
Fabíola reagiu com pessimismo:
- Se ele não resistir, como saberemos?
O coração apertado começou a chorar à ideia de perder seu pai. Santana abraçou-a e ficaram as duas chorando no meio da cozinha.
Há algum tempo parado à porta do escritório, Ricardo ouvira sua mulher. O semblante apreensivo caminhou ao seu encontro, cumprimentou a governanta, retirou Fabíola de seus braços e sussurrou ao seu ouvido:
- E então, minha querida, encontrou nossa câmera?
- Não, sequer lembrei-me de procurá-la – rebateu Fabíola enxugando os olhos.
Ricardo apertou-a contra o peito e confortou-a:
- Não se desespere antes da hora, amor. Seu pai é um homem forte, haverá de resistir. Venha, eu a levarei até o hospital.

XXI Capítulo
AGONIA



Surpreendido por um telefonema de Santana ao chegar à fazenda, Eugênio retomou ao balneário aonde chegou quase ao anoitecer. Deixou Luciano nos braços de Marisa e retomou a estrada a caminho do hospital, onde Fabíola e Elisabeth esperavam por notícias de Antero, que já recebera os socorros de emergência e permanecia na unidade intensiva de tratamento em coma induzido.
Quando as encontrou, percebeu que Elisabeth estava muito nervosa; ao vê-lo começou a falar aos borbotões tentando resumir o ocorrido. Deixou-a falar. Quando terminou, ele passou as mãos entre os cabelos em aflição:
- Você o conhece. Meu pai não merece morrer desta forma, Elisabeth. Como alguém pôde cometer tamanha violência? Ele que sempre foi correto e íntegro, procurou nos mostrar exemplos de retidão e bondade, ensinou-nos a lidar com outras pessoas... Não posso acreditar que a nossa menina foi capaz de tamanha insensatez.
O semblante cansado e tristonho de Elisabeth estava devastado pela tristeza. Assim mesmo, ela procurou confortá-lo:
- Vamos evitar julgamentos precipitados, Eugênio. Nós que o amamos, sabemos quanto Antero é honesto, é generoso, sempre cuidou bem da saúde, e gostava muito de Clara. Ela também sempre mostrou carinho por ele. O mais importante agora é confiar nos médicos, Deus haverá de ajudá-los a livrar o seu pai da morte. A sua irmã foi em busca de notícias.
Naquele momento, Fabíola apareceu no corredor, o rosto transtornado. Ao encontrar o irmão atirou-se em seus braços chorando:
- Eugênio, diga-me, por favor: tudo isto é um pesadelo? Se for, acorde-me, meu irmão! Eles quiseram dourar a pílula para mim, mas, foi inútil tentarem enganar-me. O estado de papai é muito grave, se a transfusão de sangue não for realizada logo, ele morrerá.
- Calma, minha querida, vamos juntar forças e ter paciência. Papai é um homem forte, vai sobreviver. Também quero falar com os médicos, se o meu tipo sanguíneo for compatível estou pronto a doar. Farei qualquer coisa para ajudá-lo – replicou Eugênio.
- Também posso fazer o mesmo – animou-se Fabíola – Felizmente somos pessoas jovens e saudáveis. Venha, vamos procurá-los.
Somente quando o novo dia surgiu, Eugênio lembrou-se de Marisa, que deixara no sobrado e esperava ansiosamente por notícias. A incômoda poltrona da sala de recepção e o vai e vem de enfermeiros e médicos não o deixaram dormir.
Decidiu voltar ao sobrado. Como previra Fabíola não quis acompanhá-lo, queria esperar a próxima visita dos cirurgiões que haviam atendido ao seu pai para saber novos pareceres. Apesar da transfusão, eles ainda o mantinham desacordado.
Recostada no sofá durante a noite inteira, Elisabeth sentia-se alquebrada. Também não dormira. Pensava na possibilidade de Clara reaparecer repentinamente no sobrado, sem que estivesse presente para ajudá-la a lidar com o novo sobressalto, e aceitou o convite de Eugênio para voltar.
Quando Clara estivesse sob os cuidados de Claudemir Raposo, eles retornariam ao hospital.
Mal eles chegaram ao sobrado, depois de certificar-se que ninguém o fizera antes, Elisabeth foi ao escritório de Antero e ligou para o psicanalista.
Contou-lhe tudo o que acontecera e pediu-lhe para vir à Pedra Linda o mais depressa possível. Repôs o fone no gancho e foi ao encontro de Marisa e Eugênio.
Embora deitados, eles continuavam acordados e responderam com acenos aos detalhes de sua conversa com o Professor Raposo, que chegaria naquela noite. Elisabeth tentou afastar de seus rostos a intensa aflição:
- Vocês precisam confiar, Antero está em ótimas mãos. Gostei muito da equipe médica que está cuidando dele, que sempre foi um homem saudável. Quanto à Clara, Raposo nos dirá a melhor maneira de ajudá-la diante de mais essa tormenta.
- Façam o que for preciso – suspirou Marisa desalentada, e completou - Deus do Céu, quando tudo isso terá fim?
XXII Capítulo
FLAGRANTE



- Não se preocupe meu amor, tentarei encontrá-la – garantiu-lhe Eugênio, desprezando o conselho do professor Raposo, que lhes pedira para ter paciência e esperar pelo retorno espontâneo de Clara ao sobrado.
O psicanalista acreditava que ela regressaria depressa em busca de respostas para as perguntas que a atormentavam.
Extenuada, Elisabeth recolheu-se ao quarto planejando descansar por algumas horas, desde a noite anterior não conseguira pensar em si mesma. Mal havia conciliado o sono, foi despertada pela campainha do telefone. Ricardo desejava saber notícias de Antero e de Fabíola, que havia conduzido ao hospital desde o dia anterior.
Elisabeth desculpou-se entre um bocejo e outro:
- Perdoe-me, não acordei ainda...
Do outro lado da linha, com a voz animada Ricardo sorriu e repetiu paciente:
- Sei que vocês não estão com cabeça para raciocinar friamente sobre o acontecido. Vou resolver algumas pendências aqui e logo chegarei, assim conversaremos melhor.
- Antes de vir, peço-lhe que me telefone novamente. Tentarei dormir mais um pouco antes de voltar para o hospital – pediu Elisabeth – Preciso fazer companhia à Fabíola.
- Acabo de ver o filme da festa de ontem – atalhou Ricardo - Esquecemos a nossa filmadora sobre o móvel do salão, onde ficou ligada a noite inteira.
Estremunhada, Elisabeth custou a compreender. Ricardo repetiu pacientemente, só então ela se comoveu:
- Preciso ver esse filme! Perdi o sono, tomarei uma ducha rápida e chegarei aí dentro de alguns instantes.
Durante a longa caminhada sob a torrencial chuva, Eugênio procurava afastar a inquietação e os maus pressentimentos, em vão.
Aqui e acolá, na praia sempre movimentada ele encontrava grupos retardatários de banhistas recolhendo pertences, antes de voltar ao hotel ou às suas casas.
Para manter a serenidade, ele começou a recordar a noite em que Clara nasceu. Foi na mesma noite em que a antiga Vila de Nossa Senhora dos Esquecidos se transformou no Município de Pedra Linda. Enquanto a multidão eufórica festejava pelas ruas até de madrugada, o coração em pedaços Eugênio chorara sozinho, sem coragem de ver ninguém e menos ainda de participar da festa.
Sabia que naquela noite nasceria a filha de seu melhor amigo com a mulher a quem ele amava. Por causa dela continuara a dividir-se entre o balneário e os negócios da família até as evidências o forçarem a acreditar no que se recusava a ver.
Inesperadamente, sentira sobre o ombro a mão de Antero numa silenciosa demonstração de solidariedade. Naquele momento, decidiu que somente longe dali poderia esquecê-la. Teria de ir embora como o pai tantas vezes aconselhara. A bagagem já estava pronta, na manhã seguinte retomaria os estudos na Capital. Voltou-se para retribuir o caloroso abraço de seu pai, antes de subir para o quarto. Sozinho na sala, Antero meneou a cabeça tristemente, depois retomou aos afazeres.

Às três horas daquele entardecer, o céu escureceu e forte ventania anunciou mais uma tempestade de verão. Trovões e alguns relâmpagos riscaram o céu. À beira-mar restaram alguns pescadores alheios à mudança do tempo; como eles, indiferente à chuva, Clara continuou a segurar o anzol, logo a roupa encharcada aderiu ao seu corpo franzino. Aos poucos, restou sozinha sobre as pedras.
A noite se aproximava, enquanto Eugênio de vez em quando gritava por ela, em casa Santana perdera a paciência e vestira a capa impermeável; tinha quase a certeza de saber onde estaria aquela desmiolada. No mesmo lugar de tardes anteriores: esquecida de tudo, o anzol mergulhado no mar. Precisava avisar a Marisa que também ia procurá-la.
Ao vê-la parada na soleira da porta, vestida com a capa e o guarda-chuva na mão, Marisa sentou no leito onde tentara repousar:
- Por que vai sair também? – estranhou – Vai me deixar sozinha à espera do Professor Raposo? Elisabeth foi ao hotel encontrar-se com Ricardo que a levará até o hospital. Preferia que tivesse um pouco mais de paciência e ficasse comigo esperando por Eugênio, eu sei que logo ele trará minha filha de volta. Além de você, ele é a única pessoa a merecer a total confiança de Clara – completou em tom de tristeza.
A velha governanta balançou a cabeça teimosamente, depois respondeu:
- Esta praia é muito grande, duas pessoas farão o serviço melhor, não acha? Além do mais, estou cansada de esperar, caminhar um pouco vai me fazer bem.
Marisa desistiu de convencê-la a ficar e suspirou:
- Tenha muito cuidado. Se avistá-la, antes de qualquer coisa é melhor avisar a Eugênio.
Ergueu-se da cama e completou, caminhando em sua direção:
– E, por favor, não lhe diga nada, ela pode assustar-se.
Santana sentiu os olhos marejarem. Fechou a porta, enfiou o molho de chaves no bolso e mais uma vez, dispôs-se a enfrentar o mau tempo por causa de uma menina maluca. Resmungando enquanto percorria a praia, a governanta lembrava quantas vezes tivera de procurá-la antes de o pessoal chegar. Dessa feita, todos já haviam partido, exceto...
Deteve-se um instante ao lembrar Eugênio, de quem nada conseguia esconder, como ele recebera aquele acontecimento imprevisto...
Ouviu os gritos, esqueceu as preocupações e correu. Chegou a tempo de livrá-la da força das ondas que ameaçavam arrastá-la. Lutando contra a ventania, elas percorreram o íngreme caminho de volta ao sobrado.
Depois de fazê-la trocar de roupa, Santana trouxe-lhe um prato de sopa fumegante rapidamente esvaziado. Contrariando a vontade de Marisa, deixara Eugênio continuar sua busca infrutífera, sem outro pensamento senão agasalhar e alimentar Clara. Tanto a estimava, enquanto estivesse naquela casa tentaria ajudá-la de todas as formas.
Apesar de terem surpreendido o punhal em suas mãos, a governanta recusava-se a acreditar. Clara parecia tão indefesa, incapaz de ofender a uma mosca, por mais desajustada aparentasse ser.
Antes de chegar ao primeiro degrau, a porta se abriu para dar passagem a Eugênio que retirou o capote, recostou o guarda-chuva e sentou-se para livrar-se das botas.
- Ela voltou para casa? – perguntou.
Santana fez um aceno afirmativo com a cabeça:
- Fui buscá-la. Está em seu quarto, já trocou de roupa e comeu alguma coisa. Talvez esteja dormindo agora.
Sem comentários, ele continuou de semblante fechado e subiu para o quarto onde Marisa o esperava. Mal entrou, ela indagou em tom aflito:
- Você a trouxe? Onde a encontrou, muito longe daqui?
- Santana encarregou-se disso, agora está descansando em seu quarto. O que acha, devemos avisar a policia? – arriscou, fitando-a nos olhos.
Pálida, Marisa mordeu os lábios com força antes de consentir:
- Está bem, faça como achar melhor. Infelizmente, só nos resta esta alternativa. O Professor Raposo chegou. Conversamos bastante, depois, ele se recolheu ao quarto de hóspedes. Se quiser, vá procurá-lo para ouvir a sua opinião. Suponho que lhe dirá a mesma coisa: devemos contar tudo o que aconteceu à polícia, o quanto antes melhor.
Com um suspiro, Eugênio atirou-se sobre o travesseiro. Precisava de algumas horas de descanso.
Apesar de todas as evidências apontarem na direção de Clara, quando os policiais chegaram o Professor Raposo encarregou-se de recebê-los para explicar os pormenores sobre o estado mental de sua paciente. Apesar de ser a principal suspeita do atentado cometido contra a vida de Antero Marcolino, ela não atingira a maior idade e precisava continuar o tratamento em sua Clínica, cujo endereço poderia fornecer para o caso de haver necessidade de maiores esclarecimentos. Após alguma relutância, o delegado aceitou os seus argumentos e retirou-se com os soldados.
Enquanto isso, o verdadeiro autor do atentado continuava a rondar nas proximidades do hospital onde sua vítima lutava para viver. Determinado a eliminar o homem a quem aprendera a odiar, ele se acreditava a salvo de qualquer suspeita e tecia planos para nova investida.
Acompanhara à distância a azáfama dos habitantes do sobrado, até descobrir que havia falhado em seu intento. Esperara pacientemente, ao ver a partida de Eugênio do hospital em companhia de Elisabeth, considerou haver chegado o momento propício para entrar no quarto de Antero e acabar de matá-lo. O caminho estava livre, desta vez daria certo.
Sozinha na sala de espera e recostada ao espaldar de uma poltrona, Fabíola fechara por instantes os olhos na esperança de adormecer.
Sorrateiro, o ardiloso agressor de seu pai lançou-lhe um sorriso zombeteiro antes de ultrapassar o recinto e vencer os degraus. No primeiro andar, descobriu o quarto onde Antero continuava aprisionado à infinidade de fios.
Depois de conferir se não vinha ninguém, movimentou cuidadosamente a maçaneta da porta. Antes que pudesse completar o gesto, soltou um gemido de dor e retrocedeu; o pulso torcido pela sentinela que estava de plantão desde a noite anterior o impediu de entrar no quarto. Por ordem do delegado de Pedra Linda, o soldado mantivera-se em alerta na entrada da UTI e havia se afastado por alguns segundos para tomar uma xícara de café. Chegara a tempo de surpreender e impedir a entrada do meliante, que lutou desesperadamente para desvencilhar-se, em vão.
Duas algemas logo o aquietaram.
Conduzido ao saguão, defrontou-se com o delegado de Pedra Linda que acabara de chegar e cumprimentava o juiz Pascoal Simione. Convidado por Ricardo, ele assistira às cenas captadas pela filmadora que Fabíola esquecera sobre o móvel durante a festa no sobrado, acontecida na noite anterior.
- Dessa vez chegamos a tempo. Acabou, Tomé! – declarou o juiz satisfeito.
Enquanto o algemado permanecia cabisbaixo, voltou-se para o delegado e completou:
– Agora podemos descansar, não é mesmo? Temos o flagrante configurado.
- Sem dúvida, doutor! Desde o princípio o senhor estava certo, tenho de reconhecer. Valeu a pena os dias de campana que passamos neste hospital, à espera de nosso homem aparecer para completar o serviço. Desta vez não haverá atenuantes, será prisão preventiva até o dia de seu novo julgamento, assim espero – afirmou o delegado.
Com um sorriso de contentamento, Pascoal Simione comentou:
- É pena o meu amigo Antero estar sem condições de testemunhar a prisão desse mal agradecido. Ele ficaria bem satisfeito.
- Vocês estão enganados! – protestou Tomé – Vim ao hospital para visitar o meu ex-sogro.
- De luvas e sem identificar-se na portaria? – ironizou o delegado.
- Basta meu caro! – impacientou-se o juiz - Já conseguimos flagrá-lo tentando completar o que você começou. Delegado, tire esse indivíduo de minha frente, mande levá-lo.
Com um gesto, o delegado incitou a sentinela a satisfazer ao apelo do juiz:
- Cabo José, leve-o embora. Vamos andando!
Enquanto eles se afastavam, Pascoal Simione balançou a cabeça antes do comentar para si mesmo:
- Este aí teve todas as chances para regenerar-se e atirou-as fora. Pior que isso, repetiu a lenda da víbora que picou a mão de seu benfeitor. Ainda não posso comemorar o êxito de nossa tocaia, amigo delegado. Antero continua em coma.
Naquele preciso instante, Fabíola aproximou-se com um sorriso no rosto. Ela assistira à saída de Tomé.
- Francamente, Doutor Simione, sinto-me aliviada. Aquele homem entrou em nossas vidas para tumultuar a nossa paz e não satisfeito, ainda tentou assassinar também o meu pai.
- Você conseguiu falar com os médicos? Como vai Antero? – perguntou-lhe Pascoal Simione em tom ansioso.
Fabíola apertou a mão que o delegado estendera, antes de responder:
- Se não houver complicações durante a sua recuperação, os médicos acreditam que ele está fora de perigo, embora tenha que ficar hospitalizado ainda por muito tempo. Elisabeth está esperando que ele acorde para visitá-lo.
Enquanto o delegado se retirava do hospital, debruçado ao parapeito Pascoal Simione suspirou aliviado.
- Esta foi a melhor notícia de hoje, Fabíola. Agora posso voltar para minha casa e dormir um pouco. É pena o seu irmão ter ido embora, ele precisava ver o flagrante e a prisão de Tomé, com isso a sua enteada está livre de qualquer suspeita.
Fabíola sorriu e também se debruçou ao seu lado:
– Fique descansado, tratarei de contar-lhe - garantiu - Por causa de sua persistência e de nosso descuido com a filmadora, os planos daquele assassino para incriminar a pobre Clara foram para o espaço. Mal posso esperar para ver Eugênio e Marisa novamente felizes.
Naquele momento, Eugênio terminava de estacionar o carro no pátio do hospital.


Olinda, 30/04/2004 (13h23min)
Maria da Conceição Cardim Pazzola.

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