quarta-feira, 31 de março de 2010

SAUDADE

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Penso em ti e só o vento é testemunha
Silenciosa, quando sopra em meu rosto
Desfaz a tua imagem de meus sonhos
Acordo para a saudade e o desgosto

Lembro-te todo dia, toda hora
Sinto falta apenas de retalhos bons
Cortados de nosso hiato de amor
Lembro dele até nos sons de agora

De nossa música, de tanto carinho
Sobraram tuas juras, embora falsas
Guardadas nos instantes em que juntinhos
Vivemos o amor intenso, fugaz, esparso.

Vivo hoje a pedir por louca chance
Mesmo impossível para te dizer
Quanto seria tão feliz se o acaso
Trouxesse nem que fosse de relance
Último instante em teus braços pra viver.



Conceição Pazzola
Olinda, 23/4/2003

segunda-feira, 22 de março de 2010

AMOR PACÍFICO E FECUNDO - Tagore

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Não quero amor que não saiba dominar-se,

desse, como vinho espumante,

que parte o copo e se entorna,

perdido num instante.





Dá-me esse amor fresco e puro

como a tua chuva,

que abençoa a terra sequiosa,

e enche as talhas do lar.

Amor que penetre até ao centro da vida,

e dali se estenda como seiva invisível,

até aos ramos da árvore da existência,

e faça nascer as flores e os frutos.

Dá-me esse amor

que conserva tranquilo o coração,

na plenitude da paz!





Rabindranath Tagore, in "O Coração da Primavera"

Tradução de Manuel Simões

domingo, 21 de março de 2010

LAGARTIXA ALADA: Sinopse e I Capítulo

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LAGARTIXA ALADA


SINOPSE

Cuidadosamente, o forasteiro terminou de limpar o barro da sola dos sapatos antes de entrar no empório e ergueu os olhos de menino à procura do proprietário. Sinésio sentiu a força de seu olhar e virou-se. A semelhança com a linda jovem desaparecida o fez desvencilhar-se de outros fregueses e caminhar solícito ao seu encontro.

I-


Indiferentes à sua fama de possuir boa pontaria, cada vez os grileiros ficavam mais afoitos e investiam sobre tudo o que lhe restara. As terras, a casa e o pasto. A qualquer hora sentia-lhes o cheiro, a presença indesejada. Espreitavam-lhe os passos e hábitos, em número sempre maior disputavam a primazia do elemento surpresa. O ataque era questão de tempo.
O recurso de afugentá-los com tiros nos fundilhos principiavam a perder a eficácia. Reconhecia a inutilidade da luta desigual, mas, persistiria até que nada lhe restasse para fazer.
Quando os primeiros raios de sol se refletiam à beira do riacho, depois de prolongado período chuvoso, era possível montar sentinela.
Protegida pela folhagem, Sinhana juntava as dobras da saia entre os joelhos, afagava a espingarda carregada, pronta para qualquer eventualidade, o olhar vigilante.
Com a mesma tática, os grileiros invadiram pequenas propriedades das redondezas e agora cobiçavam o que lhe restara depois do assassinato de Moruba, que se transformara em assombração inoportuna porque nada poderia fazer para ajudá-la. Surgia em horas e lugares imprevisíveis, como a vigiá-la. Perambulava incansável pelos cantos da casa, na penumbra entre os cômodos, no meio das árvores, no velho armazém de arroz. Onde Sinhana estivesse lá também o fantasma de Moruba se encontrava, sem dar-lhe trégua ou tempo de acostumar-se à viuvez.
Esquecida dos bichos no pasto, do terreiro precisando de aragem, de raízes prontas para o consumo, de frutas podres no chão, dos passeios de barco, das pescarias de outrora nas águas límpidas do riacho com as pernas enfiadas dentro d’água horas sem conta onde fincava o anzol que pertencera à Moruba até o peixe fisgar a isca, Sinhana montava guarda prestando atenção aos ruídos.
Pressentia sombras movediças e o dedo corria lépido ao gatilho, muitas vezes refreado a tempo quando reconhecia os moleques ruidosos habituados a nadar, que vinham praticar acrobacias sobre a plaqueta no meio das águas, chovesse ou fizesse sol. Moravam em mocambos aglomerados sobre palafitas, na margem oposta. Sem perdê-la de vista, espadanavam água uns aos outros, enquanto grupos esparsos de lavadeiras acocoradas dedicavam-se ao trabalho. A maioria estava ali para vigiar os filhos.
Sinhana aprendera sozinha a manejar a velha espingarda, desde quando trouxeram o cadáver de Moruba e o enterraram nos fundos do terreiro, sem muitas explicações.
Os anos passaram; apesar de bem enterrado ele a assombrava com olhares furibundos por estar morto.



Conceição Pazzola



sábado, 20 de março de 2010

INCERTEZA

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Debruça a relva com a ventania
Arrasta uma flor na força das águas
Ninguém ouve seus gritos de agonia
Entregue ao rodopio da correnteza


Suas pétalas agonizam lentamente
Vão de enxurrada sem defesa
Indiferente o rio segue em frente
Obediente à força da natureza

Como a flor dizimada pelo vento
Prossigo afogada na incerteza
Da vida insana sem lamento
Insegura e distante da represa

Envolta na tormenta, devagar
Rendo-me a um torpor benfazejo
Desisto de querer e de sonhar
Desperdiço pétalas dos desejos.


Conceição Pazzola
Junho/2008

sábado, 13 de março de 2010

ALADIM

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Era uma vez
Você voou no mágico tapete
Por toda amplidão do meu céu
Onde os muros não existem

Livre e feliz sem ver limite
Achei que a vida sorria
Tu eras um gênio só meu
Vi no teu olhar doce ternura

Uma chama ardente, a ventura
De ser tudo, ir aonde quisesse
Nos jardins floridos do mundo
Longe de tudo por teu amor

Uma fonte inesgotável de alegria
A jorrar noite e dia sem parar
Como Aladim, fui além do possível

Em busca de um amor seguro
Mas o tempo, o inimigo implacável
Devagar destruiu meu muro

A maciez do tapete havia sumido
Restou-me relembrar nossa história
Sem choro alto e sem alarido
E vou repetir: Era uma vez





Conceição Pazzola

02/7/07

domingo, 7 de março de 2010

Mulheres / Pablo Neruda

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Mulheres



Elas sorriem quando querem gritar.

Elas cantam quando querem chorar.

Elas choram quando estão felizes.

E riem quando estão nervosas.



Elas brigam por aquilo que acreditam.

Elas levantam-se para injustiça.

Elas não levam "não" como resposta quando

acreditam que existe melhor solução.



Elas andam sem novos sapatos para

suas crianças poder tê-los.

Elas vão ao medico com uma amiga assustada.

Elas amam incondicionalmente.



Elas choram quando suas crianças adoecem

e se alegram quando suas crianças ganham prêmios.

Elas ficam contentes quando ouvem sobre

um aniversario ou um novo casamento.



Pablo Neruda


sexta-feira, 5 de março de 2010

QUARESMA

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Mal acabava o período carnavalesco, que atualmente não se limita apenas aos três dias, era hora de pensar na quaresma, que antigamente se levava muito a sério quando a força do protestatismo não se fazia notar como hoje.

Depois da quarta feira de cinzas tínhamos de esquecer as loucuras cometidas durante a folia e pensarmos na Páscoa, olhando a Via Crucis que estava na parede da igreja que frequentávamos, embora só de vez em quando, ou em forma de lindos vitrais. Nela se desdobrava toda agonia vivida por Jesus carregando uma cruz pesada no ombro, até chegar ao Monte Calvário onde seria crucificado.
A cada vez que via a Via Crucis sentia correr um frio na espinha dorsal, principalmente na Sexta Feira da Paixão.
Vivendo numa cidade do interior, tinha por obrigação visitar a igreja durante a quaresma, entrar numa longa fila e esperar minha vez de chegar ao altar, onde devia ajoelhar-me e ver de perto a imagem de Jesus cheio de chagas e uma coroa de espinhos com sangue escorrendo pela testa, coberto apenas por um exíguo pano branco, os pés cruzados como se ainda estivesse pregado na cruz, machucados e também sangrando.
Lembro da primeira vez. Era somente uma criança levada da breca, acostumada a apanhar e receber cascudos que nada resolviam. Ao chegar diante da imagem em tamanho natural, era como se estivesse diante do verdadeiro Jesus morto. Os olhos encheram-se de lágrimas e tratei de fazer meia volta rapidinho, sentindo-me a pior espécie de gente, sem entender como era que na manhã seguinte seguiria atrás da procissão de Aleluia, cantando hinos de alegria pela ressurreição de Jesus.
Felizmente, hoje em dia não há obrigação de entrar naquela fila, nem de levar as crianças para fazê-lo, semelhante à de um cinema ou de um parque de diversão, para ver de perto quanto Jesus sofreu.
Ainda com aquela imagem Dele morto na cabeça, jamais senti vontade de ir à Nova Jerusalém para a encenação da Paixão de Cristo, com atores belos e sarados representando Jesus.

Conceição Pazzola
Olinda, 5/3/2010