quinta-feira, 28 de maio de 2009

PETER PAN


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Ainda quero rever um dia
Espero esteja muito próximo

Neste mesmo espelho mágico

Onde há hoje apenas exibida


A eterna máscara tristonha

Tua e tão repetida

Um dia eu a busquei risonha

Em vez disso ei-la sem graça


Sempre tão enfastiada

Quisera houvesse um milagre

Transformá-la em nova criança
Alegre, cativante e sincera

De novo a viçosa primavera

Recobrado o autêntico sorriso

Banido agora de seu rosto sério

Apertado entre suas mãos

Tal máscara de gente grande

Esquecida de feliz infância

Sonhei vê-la solta, livre


Entretida nos brinquedos

Fantasiada de princesa

Do reino da alegria
Sem segredos
À espera de um momento mágico


Em que a aurora reaparece

No galope de um cavalo branco

Vem São Jorge e sua espada brilhante

Contra o inimigo, o monstro dragão

Longe de mil sonhos mal vividos
De longas, tristes horas solitárias

Longe de um tempo comprido

Feio tempo de brincar de gente grande.


Maria da Conceição Pazzola.

3/10/1998

quarta-feira, 27 de maio de 2009

PREMONIÇÃO


Imagem google


A mulher é contra-senso de desejos

Tem constante anseio de vontades

No pêndulo de juízo e vaidades

Balança entre dúvidas e pelejas


Entre o sim e o não ela carrega

Pela vida rotineira em turbilhão

Sem palavras e qualquer reação

Equilibra do paraíso à comédia


Suporta silente a simplória verdade

Sabe de seu destino, a sina, a glória

De nascer mulher, na maternidade

Tem a passageira e maior vitória


Vê nas filhas a reprise de sua trilha

Vaga no meio de mundos conquistados

De santos homens, são pais da família

Cabe a cada mulher um lugar ao seu lado.



Conceição Pazzola

Olinda, 08/03/02

INÚTIL REGRESSO




NOTA DA AUTORA:

Este é o primeiro livro com o qual pretendo presentear todos os visitantes de meu blog. Espero que gostem. Em caso afirmativo, por favor deixem os seus comentários.




PREFÁCIO

Numa pequena e desconhecida aldeia onde vivia aquele velho mandarim, aborrecido e cansado de tanto lutar para sustentar a numerosa prole, certa noite, sem contar a ninguém ele decidiu que não voltaria para sua casa. Andou, andou e andou um dia inteiro. O cansaço o fez recostar-se ao muro existente em volta da construção onde estivera cumprindo sua jornada de trabalho, estafante e rotineira.

Como num passe de mágica, ali adormeceu profundamente e só veio a despertar duzentos anos depois. Ao reabrir os olhos, assustado, o velho mandarim encontrou tudo mudado à sua volta. De imediato ficou muito apavorado, sem entender o que havia acontecido. Feito um insano foi à procura de seus filhos, de sua casa, sua família e de sua mulher. Em vão. Naquele mundo completamente estranho para ele, ninguém mais o conhecia ou sabia responder suas perguntas. Os dias e as noites foram passando. O velho mandarim cansou-se de percorrer a cidade inteira de um lado a outro e resolveu voltar ao mesmo lugar de onde havia saído. Ali, não achou mais nenhum muro para recostar-se, tampouco a construção de onde pudesse tirar os salários para sustentar a si mesmo e à numerosa prole, se é que ainda havia...

Este preâmbulo de um clássico conto chinês foi minha inspiração inicial ao modesto romance de Margarete. Também ela estancou na vida, acreditou na sobrevivência e na força de um amor, mesmo à distância.

Nem é preciso ser romântico para acreditar que ainda existe muita gente capaz de fazer coisa semelhante. Acalentar ilusões de lugares e de seres queridos deixados para trás durante muitos anos de nossas vidas, ou no decorrer do tempo.

Além de saudade, a separação e a distância provocam dentro de cada um de nós o congelamento de imagens e sentimentos dos seres que amamos e deixamos no passado.

Com um pouco de sorte, depois de anos ausentes talvez possamos recuperar aqui e ali alguns retalhos de nossa saudade, enquanto os sonhos, as pessoas, os recantos guardados por nossa memória giraram lentamente, implacavelmente e foram levados para sempre.


Capítulo I




As pessoas que transitavam pelo aeroporto apressadas e atarefadas, não prestavam atenção àquela linda moça morena de porte elegante que em passos ligeiros dirigia-se para a porta envidraçada de saída. Era, no entanto, um tipo de chamar atenção: alta, de lânguidos olhos negros e traços delicados, vestida elegantemente no rigor da moda.

Parecia-lhe estranho como tudo corria às avessas. Tantas vezes Margarete sonhara com aquele regresso. Agora se realizava e tudo lhe parecia tão irreal. Ninguém viera esperá-la e deveria saber que isso seria impossível. Viajara sem avisar; arrependia-se por não tê-lo feito, era melancólico não encontrar um amigo, um parente sequer, um abraço de boas vindas, nem mesmo um jornalista, um fotógrafo indiscreto. Ao invés de respirar de alívio pela liberdade momentânea de flashes, entrevistas e autógrafos, sentiu-se decepcionada.

Dentro do táxi, mal segurava a emoção revendo ruas e lugares tão conhecidos e tão queridos. Torcia as mãos num gesto impensado, o coração descompassado por indescritível alegria. O torvelinho de imagens ameaçava seu já exaltado estado interior, sobrepunham-se umas às outras em suas lembranças sem que pudesse coordená-las. Primeiro, a festa de despedida. Risos, música, muitos amigos haviam celebrado a sua partida como se fosse a coisa mais engraçada deste mundo. Evidentemente eles se negaram a crer na firmeza de sua resolução, suspeitavam que a sua repentina ideia fosse logo descartada. No auge do sucesso e uma peça nova a estrear os convencia do contrário, e não a levaram a sério porque desconheciam os detalhes de sua história. Em transe, deixou-se envolver pelas recordações que vinham em caudalosa cachoeira.

Enquanto dançavam durante a festa do dia anterior, o amoroso, inseparável amigo Carlos aproveitara todas as chances para repetir juras amorosas:

– Nunca vou deixar de te amar, minha doce Margarete. Esqueça esta farsa ridícula. Aconteça o que acontecer, seja o que for que te espera por lá, continuarei torcendo para que volte logo. Você é, foi e sempre será minha estrela: os ensaios da próxima peça ficarão suspensos até que isso aconteça.

Sempre dominador e persuasivo, os olhos ardentes como a hipnotizá-la enquanto falava. Sob aquele olhar, ela realizava impossíveis. Também ele duvidava de seus planos de não mais voltar.

À visão da paisagem através da vidraça do táxi ressuscitaram das brumas do passado as suas lembranças em grandes vagas; aquele distante, inesquecível tempo em que ali vivera o intenso romance, onde ela e Ulisses eram os únicos protagonistas.

Jamais pudera esquecer o inigualável amor que ele lhe dedicava; como em sonho viu desfilarem as ruas, as casas, as esquinas tão conhecidas de sua cidade, impregnadas de Ulisses em todos os recantos, até o ar o lembrava. Reviveu cada momento com o seu primeiro e eterno amor.

– Por favor, pela última vez peço-lhe, não se vá. Não poderemos viver longe um do outro – implorou ele tantas vezes para dissuadi-la.

Ainda por muito tempo a súplica apaixonada ressoara em seus ouvidos; quando os anos passaram restou em seu lugar o remorso; quando o arrependimento deixou de atormentá-la, desvaneceu-se, em seu lugar ficou o desejo nostálgico, a vaga expectativa de voltar algum dia. Ele saberia compreender e perdoá-la. Um amor como o deles atravessava todos os obstáculos, até o tempo.

Finalmente se tornara realidade, ainda lhe custava entender onde encontrara forças para deixar tudo para trás apenas por ele e para reencontrá-lo. Quisera fazer-lhe uma grande surpresa, este o motivo por que ninguém sabia de sua chegada.

Aquela Margarete que ele conhecera e amara, a humilde e obscura filha de operários, como soe acontecer nos contos de fada metamorfoseara-se em moderna Cinderela. Era agora a famosa atriz de teatro; devia muito à influência e ajuda de Carlos, seu agente e muitas vezes, companheiro de cena. Dedicava-lhe afeto e muita gratidão, entretanto, era Ulisses a quem amava ainda. Por ele, havia ficado todos aqueles anos em suspense, rejeitara convites sedutores e propostas de casamento, movida pela esperança de reatarem.

Todos os anos tristes e solitários estavam prestes a desaparecer, embora nunca houvesse trocado cartas ou telefonemas, nada poderia destruir um amor igual ao deles. Bastava-lhe a convicção de que ele a esperava.

O táxi freou diante de seu antigo endereço. O coração descompassado, Margarete demorou a decidir se desembarcava; gastou alguns minutos a observar detalhes daquela mesma casa de aspecto abandonado. O seu lar, igual como o deixara há dez anos; a sua visão devolveu lembranças felizes dos pais, de sua infância.

Dominada por intensa emoção viu a porta escancarar-se e os braços calorosos de sua agora envelhecida irmã a rodearem, enquanto lhe dizia quanta felicidade despertara sua chegada. Nada conseguiu falar enquanto a irmã repetia o abraço, os gritos alegres. Depois do casamento, Isaura viera com a sua família ocupar a velha casa. Através de Dr. Onofre, o antigo advogado de seus pais, Margarete cuidara de manter intactos os doces e antigos elos, comprara a escritura daquele lugar onde passara toda sua infância.


Abraçadas elas caminharam pela pequena alameda circundada pelo mesmo caramanchão florido, tão seu velho conhecido. Colheu uma flor e a prendeu entre os cabelos, feliz demais por estar novamente em casa.


Capítulo II


Reinava naquele lugar silencioso e triste, calma tão envolvente, paz tão completa que Margarete desejou nunca mais ter de abandoná-lo. Há muito tempo estava ali, como petrificada, o olhar fixo na lousa branca como se duvidasse do que lia. As letras pareciam dançar um balé macabro e inquietante à sua frente: “Dr. Ulisses Jordão – Nascido em 05-01-1922. Falecido em 23-12-1960”. Martelavam dentro de sua cabeça, ricocheteavam infinitas vezes, continuava a desacreditar delas.

Por um acaso guardara na memória aquela data, uma das noites mais felizes de sua carreira. Depois de seis meses ininterruptos em cartaz, acontecera o último espetáculo da peça de maior sucesso; dificilmente poderia esquecer uma noite assim, tão gloriosa. Terminada a apresentação, os atores e a diretoria se reuniram na boate mais famosa da cidade, até o dia amanhecer eles comemoraram a grande vitória. Irônico destino; naquela noite plena de vida, de euforia pelo sucesso obtido, para ela, Carlos e todo elenco, aquela mesma noite fora a última para o seu Ulisses.

Tudo acontecia de maneira imprevista e artificial sobre o palco; Margarete acostumara-se à correria louca de ensaios, ao frenesi dos bastidores, à rotina enlouquecida até a noite de estreia, nenhum vestígio restava depois dentro de si mesma. Habituara-se à mistificação de emoções vezes sem conta desempenhadas. Pela primeira vez, a realidade vinha ao seu encontro de forma brutal e imprevista. Não sabia como lidar com ela. Era como se tivesse morrido também; sentiu o oco gigantesco do desespero aproximar-se devagar e sorrateiro; olhou a sua volta sem nada enxergar; como um trapo inútil continuou ajoelhada sobre a lousa fria sem querer enfrentar a realidade. Recusou-se a reagir, insensível até mesmo para chorar. Teimosamente repetia para si mesma: não pode ser verdade, bom Deus, é impossível! É apenas um pesadelo e logo vou acordar. Este não é o túmulo de meu Ulisses. Surpreendeu-se ao ouvir o som de sua própria voz.

Tudo aquilo era mais uma farsa burlesca, não era ela quem estava ali, aquelas letras nada representavam. Em desespero, procurava justificativas para amenizar a crueza da realidade.

Desejou com todas as forças retroceder no tempo, impedir a todo custo chegar àquele momento, inutilmente. Pareceu-lhe ouvir alguém segredar baixinho em voz monótona: ele morreu, ele morreu, ele morreu...

Tampou os ouvidos num gesto insano, teimosamente se recusava a compreender a triste verdade: ele nunca poderia saber de seu regresso, de quanto sonhara com ele. Quantas noites insones, incontáveis, a relembrar cada detalhe de seu rosto, sorriso, som de voz, a planejar a cena do reencontro, o calor emitido pelo seu corpo preso ao dele, a alegria transbordante ao vê-la novamente. Estava morto.

Mansamente as sombras começaram a chegar e, com elas, as recordações daquele passado que jamais voltaria.

Via-se menina, de gestos estudados, olhares comedidos e fala compassada revelava a atriz precoce. Em seu íntimo continuava menina ainda; entretanto quando era de fato, pouco ou nada tivera importância, não se dera conta disso. Em todas as fases de sua vida, Ulisses estivera presente. Fora seu companheiro de meninice, amigo de escola, confidente e namorado de juventude... Os pais dele tentaram de todas as maneiras proibirem aquela proximidade sem resultados; terminaram por acostumar-se a vê-la sempre em torno de Ulisses como sua sombra; cruzava com eles pelos corredores e escadas do palacete onde moravam. Para ela, aquela casa representava o verdadeiro palacete, o mais bonito e luxuoso jamais visto. Quando retornava à sua casa modesta, compreendia por que os pais de Ulisses não gostavam dela, a garota de origem obscura.

Através dos anos ansiaram por motivos para estar juntos; sem grandes obstáculos, pois moravam na mesma rua, frequentavam a mesma escola e tinham os sonhos bem parecidos, como se fossem irmãos.

Depois, durante a mocidade tudo se modificara, deixaram de tratar-se com a costumeira naturalidade, até a maneira de olharem-se sofrera transformações. Surpreendiam-se cautelosos no tratamento, encabulados em tocar-se, viam-se com menos frequência. Quando se encontravam, perdurava entre eles estranha perturbação, substituíam a loquacidade por olhares prolongados que diziam mais do que palavras. Ulisses realizou o grande sonho de seus pais; aprovado na faculdade, partiu para estudar no curso de medicina.

As cartas tornaram-se o traço de união; as dele, longas e apaixonadas; as suas, sucintas ou raras. Finalmente, a última carta: “Minha Margarete, hoje recebi a fabulosa cartolina que veio coroar tantos anos de tortura longe de você. Estou prestes a revê-la, mal posso aguentar a espera, volto confiante que nada mudou entre nós. Quero encontrá-la no parque, em nosso lugar, onde você aparece toda noite nos meus sonhos. De preferência ao cair da tarde quando há quase ninguém, no mesmo dia em que chegar.“

Passou a contar as horas com mais precisão do que o relógio; mal controlava a impaciência. A enervante expectativa teve fim, certo dia em que percebeu grande agitação no palacete. Viu os empregados carregarem buquês de flores e bandejas perfumadas a manhã inteira e teve certeza: Ulisses haveria de chegar naquele dia. Ao cair da tarde foi para o parque como ele havia pedido, esperou por muito tempo, quando desistiu de esperá-lo e decidiu voltar, avistou-o caminhar ao seu encontro.

Estava mudado e lindo demais. Como ela o amara naquele momento! Deixara a família e o palacete em festa somente para revê-la. Não parecia em nada com aquele adolescente magricela e desengonçado que lhe dissera adeus, envergonhado com as lágrimas incontidas. Transformara-se num verdadeiro homem, alto, seguro de si, bonito, irresistível. Somente continuavam iguais o sorriso que lhe abria covinhas nas faces e o brilho de seu olhar. Margarete entendeu, feliz, porque os olhos dele brilhavam do mesmo jeito quando se atirou impulsivamente em seus braços para trocarem o primeiro beijo.

Entregue às reminiscências, devagarzinho as lágrimas deslizaram sem que percebesse. Aquele foi um final de tarde maravilhoso, repleto de doces juras e muitas palavras amorosas. Finalmente libertos do constrangimento e do ingênuo romantismo de outrora, no reencontro descobriram a verdade sobre o sentimento que os unia, sincero e duradouro. Eles surpreenderam-se a fazer planos para o futuro. Apenas as sombras da noite os fizeram acordar para a hora tardia.

O futuro ali estava., tudo havia terminado. Sob o insuportável peso de terrível culpa, estranho tremor percorreu-lhe o corpo. Jamais deveria ter ido embora.

Desde o princípio, todas as circunstâncias foram contrárias àquele amor; entre elas, a família de Ulisses. Durante os primeiros anos de namoro tiveram relativa liberdade para o convívio sereno, os sinais de oposição passaram quase despercebidos. Até o momento em que ele decidiu formalizá-lo e declarou aos pais a firme intenção de casar-se com Margarete. O antagonismo crescente circundou-a de forma insuportável, quando saía às ruas expunha-se aos comentários e cochichos. As frequentes e acaloradas discussões de Ulisses com os pais se tornaram públicas, a cidade inteira comentava e a culpava. Embora ele procurasse dissimular o tamanho real dos obstáculos cercando-a de carinhosa atenção quando se encontravam, não conseguia disfarçar o embaraço e o aborrecimento recentes. Muitas vezes teve de esperá-lo horas seguidas;. Quando podia livrar-se do cerco e dos compromissos impostos propositalmente para afastá-los, ele se mortificava a desculpar-se e a prometer o impossível, nas próximas vezes seria diferente; e tudo se repetia.

Ao mesmo tempo surgira a primeira chance de praticar o que aprendera, foi aprovado para a residência médica em hospital da cidade onde começou a trabalhar como interno.

Por coincidência do destino, o primeiro paciente grave de Ulisses foi o agente teatral e ator Carlos Antenor; vitimado na rodovia por um acidente automobilístico e conduzido ao hospital ainda inconsciente. Diagnosticadas as fraturas e contusões generalizadas, Carlos seria a oportunidade única sempre sonhada por Margarete, ao mesmo tempo, iria afastá-la dos braços de seu amado e daquela terra.

Possuidor de forte carisma, num passe de mágica Carlos fazia as mulheres sentirem-se frágeis, carentes de proteção. Íntegro, dominador e dinâmico, por força das circunstâncias aprisionado ao leito de hospital logo se sentiu perdido.

Ingenuamente, todas as vezes que se encontravam Ulisses tecia arrebatados comentários sobre ele. Tornara-se o seu primeiro caso relevante, queria compartilhá-lo em minúcias com Margarete. Os comentários despertaram-lhe crescente curiosidade, certa manhã decidiu ir ao hospital conhecê-lo.

Desde quando ali sua mãe falecera, era a primeira vez que voltava. Depois de entrar Margarete pressentiu ter agido de forma impensada, talvez precipitada. Ulisses dispunha de pouco tempo a gastar com ela, mas, esforçou-se para transmitir-lhe segurança, muito orgulhoso por vê-la compartilhar por alguns momentos de seu ambiente de trabalho. Envergava a bata branca com naturalidade, levou-a até o quarto onde Carlos convalescia. Até aquele momento ela se considerava perdidamente enamorada, no entanto, teve de lutar contra o envolvente, perigoso fascínio que emanava do primeiro paciente de Ulisses. Dominada por estranha perturbação, esquivou-se durante toda a visita de seu ostensivo enlevo, expresso no olhar ardente apesar da presença de seu namorado. Mais tarde ele lhe confessaria: - Foi como se a própria manhã tivesse entrado por aquela porta, naquele lugar horrível.

Durante os poucos minutos em que permaneceu no quarto, Carlos revelou a sua profissão de agente teatral e ator, provisoriamente interrompida pelo inoportuno acidente. Insensivelmente deixou-se enredar, pouco a pouco a dedicação e o amor de Ulisses não bastavam mais. Quase diariamente encontrava pretextos para ir ao hospital.

Carlos aproveitava os instantes em que ficavam sozinhos para sussurrar doces propostas. A princípio Margarete escandalizava-se com o palavreado, tantas vezes repetido passou a achar engraçado, surpreendia-se por recordá-lo quando estava sozinha. A persistência dos convites estimulou a antiga ambição de ser atriz famosa. Tudo seria possível se pudesse aceitar a proposta de Carlos. Parecia tão fácil, quando se recuperasse ele a levaria consigo para a Capital, com a sua ajuda haveria de brilhar em todos os palcos.

Antegozava secretamente a escalada para a riqueza e a fama; aquela seria a única chance de mostrar aos que zombavam de sua pretensão antiga de estudar teatro. Podia chegar a ser alguém, apesar de sua origem. Poderia significar uma lição estupenda à família de Ulisses; provaria o seu desinteresse por nomes ilustres e projeção social.

Depois de sarar, por algum tempo Carlos ainda permaneceu na cidade, cada vez mais arrebatava Margarete com planos entusiásticos a seu respeito. Dentro em pouco a cidade inteira comentava sobre os seus encontros; o cerco se estreitava, sem alternativas ela reuniu coragem para dividir os planos com seu amado. Surpreendeu-se com a inesperada avalanche de ciúmes, incompreensão e raiva. Ulisses estava cansado de ouvir opiniões maliciosas sobre as relações suspeitas de Margarete com o fascinante forasteiro. Decepcionara-se sobremaneira, ao vê-las confirmadas de seus lábios recusou-se a analisar friamente o assunto; de nada resolveu jurar repetidas vezes quanto o amava e nada poderia afastá-los. Se quisesse continuar ao seu lado teria de esquecer Carlos Antenor e os sonhos de ser atriz.

Perplexa, Margarete percebeu quanto ele havia modificado o primitivo deslumbramento com a personalidade cativante de seu primeiro paciente grave. Passara a odiá-lo com todas as forças, proibiu-a de mencionar o nome dele; considerava-o um conquistador vulgar, capaz de ludibriar qualquer uma com aquela falsa promessa de carreira teatral. Tiveram a primeira, intensa briga; cada vez mais descontrolados ofenderam-se mutuamente com ásperas palavras, provocaram mágoas difíceis de corrigir. O costumeiro tratamento carinhoso, as juras trocadas de amor eterno tinham desaparecido por encanto no calor da discussão. Despediram-se desiludidos e infelizes.

Completamente envolvido com o trabalho no hospital, Ulisses deixou de procurá-la.

Desanimada, ela compreendeu que nada mais havia para detê-la. O caminho estava livre, poderia alcançar o que sempre desejara. Seus pais cederam às súplicas, aprovaram a viagem e a proposta de Carlos, exigiram dele o contrato formalizado perante o Doutor Onofre, advogado reconhecido em toda cidade.

Numa triste manhã de inverno deixou para trás o lar, a cidade e o único homem que sempre fora sua única razão de viver. Com o automóvel novamente pronto para viajar, Carlos foi buscá-la no portão de casa. Quando Margarete ultimava a despedida rodeada pelos familiares e transportando as malas, repentinamente Ulisses postou-se diante dela; transtornado pela mágoa provocada por aquela cena, indiferente ao fato de estarem de relações cortadas agarrou-lhe as mãos e implorou:

- Pela última vez eu lhe peço Margarete: não vá! Eu não poderei viver sem você.

Em lágrimas, ela o abraçara com infinita ternura e murmurara:

- Por favor, querido, lembre-se: ninguém, nada poderá mudar o que sentimos. Devo ir, mas, voltarei porque eu te amo. Prometo!

Cumprira a promessa tarde demais.



Capítulo III



Sentiu um leve toque no ombro; voltou-se assustada, era o vigia do cemitério que a olhava compadecido:

- Preciso fechar, volte para casa. Vou acompanhá-la até o portão, vamos?

Só então ela percebeu que estivera chorando. Levantou-se constrangida e caminhou ao seu lado de ombros curvados como se carregasse um grande fardo. Ulisses... Era terrível não poder recordar sequer o seu rosto; durante todos aqueles anos de ausência nunca mais tivera notícias, a princípio escrevera-lhe frequentemente, sem obter respostas, desistira.

Nada pôde arrefecer a força de seu amor nem a convicção de encontrá-lo à sua espera; sentia agora as consequências da grande loucura por ter resolvido voltar às cegas, desconhecendo tudo o que acontecera enquanto esteve ausente durante dez anos.

Lutara bravamente para alcançar os padrões de sua importante família. Sufocara a intensa saudade enquanto se tornava rica, famosa, disposta a derrubar todos os obstáculos de sua origem obscura. Poderiam aceitá-la agora de braços abertos, havia conquistado o direito de ser a sua esposa.

Diante do irremediável, compreendeu a inutilidade de tanto sacrifício. Como criança desamparada recomeçou a tremer de frio. Anoitecera. As sombras espalhavam-se ao seu redor durante o percurso por ruas e esquinas sem destino certo; as conhecidas ruas de infância e mocidade palmilhadas com Ulisses. As luzes agrediram-lhe os olhos, nublados pelas lágrimas que deslizavam quentes.

Ainda relutava em aceitar a terrível verdade, o remorso ameaçava esmagá-la por tantos anos de afastamento. Estava completamente só.

Como chegara até ali? Reconheceu o portão, depois o jardim sempre bem cuidado e a pequena escada de mármore conduziam ao umbral do palacete com suas imponentes pilastras onde continuavam a enrodilharem-se os finos galhos de madressilva cobertos de flores.

Ficou paralisada, em busca de coragem engoliu os soluços na garganta. Centena de vezes correra sobre aquele gramado perseguida por Ulisses e as recriminações de sua mãe. Viu-se menina, o cabelo solto ao vento. Ele fora o seu ídolo, o menino mais bonito deste mundo; sempre o amara, sabiam desde cedo que tinham nascido um para o outro.

Meu Deus, por que cometera a loucura de partir? De que adiantariam agora recriminações e motivos, como o orgulho ferido e a teimosa ambição em conquistar todos os sonhos? Tudo perdera o sentido, tornara-se banal diante do enorme vazio de sua morte. Continuou a olhar como se estivesse hipnotizada para as luzes ofuscantes do palacete. Do outro lado daquela rua ficava a sua velha casa... Assaltada por uma ideia insana, caminhou feito sonâmbula. Ele estava lá dentro, à sua espera...

Somente iria embora quando pudesse entrar e percorrer todos os cômodos; hesitou apenas alguns segundos, atravessou o portão, percorreu a curta alameda e apertou a campainha. Quando a porta abriu-se retrocedeu amedrontada, subitamente terminara o devaneio. À sua frente reconheceu a senhora de cabelos brancos; ainda muito bela encarou-a com tranquilidade como se a esperasse; pequenas, infinitas rugas de amargura sulcavam-lhe os cantos da boca.

– O que deseja? – perguntou-lhe com incontida irritação, fitando-a nos olhos. Sem obter resposta repetiu a pergunta. Ela pareceu despertar:

- Deixe-me entrar, preciso falar-lhe! – suplicou com a voz rouca.

A mãe de Ulisses hesitou por alguns segundos, depois se afastou para dar-lhe passagem. Alheia, como sonâmbula Margarete andou vagarosamente pela sala luxuosa coberta de tapetes macios. Tudo estava igual; a mesma disposição da mobília, as mesmas cortinas pesadas nas janelas largas. De repente o coração pulsou de forma violenta. Diante de seus olhos Ulisses sorria dentro da moldura dourada de um quadro magnífico. Conhecia aquele retrato, “ela” o mandara reproduzir e agora enfeitava sua parede. Estava certa quando supusera encontrá-lo à sua espera; era uma pintura tão perfeita, ele parecia real, a qualquer momento viria estreitá-la em seus braços. As lágrimas voltaram, enxugou-as com rapidez ao ouvir a voz da mulher:

- É apenas um quadro, o meu filho está morto. Ainda não me disse o que veio fazer aqui. Perdoe-me pela franqueza, mas, nesta casa nunca houve lugar para você.

Lutou para controlar a raiva antes de responder:

- Não se preocupe Dona Cristina. Há tempos que eu sei disso. Pouco importa, voltei com a única intenção, ficar com ele. Pretendia fazer-lhe uma surpresa... – a voz partiu-se num soluço contra a sua vontade.

Imperturbável, Dona Cristina acomodou-se na poltrona que afundou sob o seu peso antes de retrucar:

- Depois de dez anos? A quem esperava enganar? Faça-me o favor, não sejamos hipócritas. Volte para o teatro e para aquele homem que a levou daqui. O meu filho não precisa de suas lágrimas.

Margarete continuou ereta no meio da sala, ela não a convidara a sentar-se. Respondeu fora de si:

- A senhora está cometendo um grave erro. Sempre amei Ulisses. Por causa dele, durante todos estes anos só tive um desejo: voltar. Lutei para vencer honestamente, queria ser digna de receber o seu nome.

Em resposta, Dona Cristina soltou uma risada sarcástica, teve o efeito de uma violenta bofetada. Margarete procurou a porta, desesperada; da moldura fria ele continuou a sorrir, as lindas covinhas nos cantos da boca, parecia feliz. Cruzou o portão em rápidas passadas, enquanto fugia ouviu o barulho da porta fechada às suas costas, o eco daquele riso a persegui-la. Nada havia se modificado.


Capítulo IV


A natureza colaborou para aumentar a angústia de seu estado de alma. Sentiu as primeiras gotas de chuva no rosto e pensou loucamente que, de algum lugar, Ulisses chorava com ela. Andou sem rumo. As ruas tomaram aspecto fantasmagórico, as luzes molhadas tremeluziam nas poças do asfalto. Sem importar-se com o vento cortante nem o aguaceiro ainda caminhou por muito tempo; de repente a rua terminou e surgiu o querido, inesquecível parque com suas árvores aconchegantes, antigas e frondosas, suas calçadas em semicírculo, repleto de doces recordações.

À luz do dia, invariavelmente se tornava um recanto alegre, movimentado, com a grama sempre bem aparada, os balanços infantis cheios e seus convidativos bancos de pedra ocupados por casais de namorados ou passantes solitários.

Àquela hora sob a chuva, escuro, silencioso e deserto, as sombras de grandes árvores emprestavam-lhe um aspecto amedrontador. Indiferente, completamente encharcada Margarete atravessou lentamente a rua, caminhou pelo parque e sentou-se sob a chuva fina. Percebeu a ausência do lindo caramanchão florido, abrigo de casais tímidos que nele procuravam refúgio para trocar carícias e beijos, longe de olhares indiscretos. Fora substituído por um largo canteiro de flores amarelas, em torno de imponente busto de bronze; deferência a algum personagem ilustre da cidade.

A roupa molhada e os cabelos colados ao rosto, ela se deixou dominar pelo intenso desespero que aquele lugar só aumentava. Martirizava-se revivendo cada instante maravilhoso com Ulisses, as brincadeiras, as juras, as cartas cheias de promessas durante os anos de faculdade de medicina, os beijos trocados. Pensava com tanta intensidade, parecia-lhe sentir a sua presença; custava-lhe acreditar na sua morte como algo definitivo. Tudo deveria ser um terrível pesadelo.

Em resposta aos seus pensamentos avistou o homem alto e bem apessoado, como Ulisses, vindo prazerosamente ao seu encontro emoldurado pela noite e pela chuva. O coração começou a pulsar mais forte enquanto o homem aproximava-se cada vez mais. Sem refletir, ela atirou-se em seus braços, que muito naturalmente abriram-se para recebê-la.

– Ulisses! Meu Ulisses... Você está aqui, eu sabia. Era tudo mentira, tudo mentira... Meu Deus, como pude acreditar? - explodiu em delírio, radiante.

O homem segurou-a delicadamente e afagou-lhe o rosto, afastando os cabelos molhados. Margarete chorava de alegria, o rosto escondido em seu peito; o destino não podia ser tão cruel.

- Por que a senhora fez isso?

A voz de Marion sobressaltou Dona Cristina, ainda parada no meio da sala depois da saída de Margarete. Voltou-se devagar, encontrou o olhar reprovador da nora, que à distância presenciara o breve colóquio.

– Vejo que assistiu toda aquela comédia. Você conhece a moça? – indagou cheia de ironia.

Sem demonstrar irritação Marion continuou a fixá-la com os seus límpidos olhos cor de mel. Trazia no colo a criança de cabelos louros iguais aos seus, de aproximados três anos.

– Naturalmente. É Margarete, a atriz de teatro que namorou Ulisses antes de nos casarmos. Uma das qualidades de meu marido era a sinceridade. Ele conservava o seu retrato sobre a escrivaninha do hospital. A senhora deve ter visto.

A sogra a olhou dubiamente:

– É verdade. Foi o único verdadeiro amor de meu filho, enquanto ele viveu. Por isso eu a odeio!

A moça sentiu compaixão, aconselhou-a:

- Não vejo motivos, porque ela foi apenas o seu primeiro amor. Quando ele morreu, a senhora sabe muito bem, era a mim e a Regina que amava. Além da senhora, é claro.

Cristina pensou alguns instantes, depois insistiu:

- Está enganada. Ulisses nunca pôde se livrar daquela criatura. Foi graças a mim que ele casou com você.

- Ora, eu sei que isso não pode ser verdade. Margarete foi somente a primeira mulher de sua vida, eu fui a sua esposa. Ele me amava muito, adorava a sua filha – replicou Marion.

- Pobre iludida! Continue a acreditar nisso, se lhe faz bem. Essa mulher nunca deixou o meu filho em paz. Mesmo distante insistiu em torturá-lo, queimei todas as suas cartas mentirosas até ela parar. Ninguém me convence do contrário.

- Agiu conforme seu padrão de consciência - redarguiu Marion impulsivamente - A senhora melhor do que ninguém sabia, Ulisses tinha problemas cardíacos desde nascença. Quando o nosso filhinho foi considerado natimorto, ele mergulhou em tristeza, entrou em crise depressiva como se a dor fosse apenas sua e de ninguém mais. Lutei com todas as forças para ajudá-lo a reagir, sem resultados, até o dia de seu enfarte fulminante quando o perdemos também. Margarete estava longe, não teve culpa nenhuma. Por favor, não seja cruel.

- Você não conhece a verdade - insistiu a sogra - Só depois que ela partiu, o meu filho ficou doente. Antes, era cheio de vida, de alegria. Para mim, ela continua a ser a única culpada – sua voz quebrou-se num soluço.

Marion vacilou enternecida, porque a estimava. Convicta de saber toda a história sobre o namoro entre o seu marido e Margarete, preferiu deixá-la sozinha com as suas ideias. Dona Cristina ainda não se refizera da perda de seu único filho, seria melhor não aumentar a ferida.

Procurou na filha o lenitivo para afastar a melancolia despertada após a conversa com a sogra:

- A senhora esqueceu-se de beijar a sua neta – lembrou-a, e mostrou a criança para que o fizesse.

A mulher segurou-a em seus braços, readquirindo o autocontrole.

Enquanto isso, no parque chegara o momento de lucidez e retorno à realidade.

- Venha Margarete, vamos sair da chuva. Você precisa voltar para casa. Assim vai ficar doente.

Àquelas palavras ditas com extrema doçura a fizeram desvencilhar-se dos braços que a retinham. Temia a qualquer momento o encanto desfazer-se e insistiu:

- Por favor, ainda não. Fique mais um pouco...

Com ambas as mãos, o homem ergueu seu rosto e a obrigou a fitá-lo:

- Olhe bem para mim. Não sou Ulisses – afirmou calmamente.

Na penumbra do parque ela o olhava sem querer compreender:

– Por que diz isso? Eu sei que você é o meu Ulisses. Veio ao meu encontro, queria que eu soubesse a verdade. A distância e o tempo não conseguiram destruir o nosso amor – enlaçou-o de novo em seus braços.

Ele desvencilhou-se, afastou-a com firmeza:

- Pare de repetir esta loucura. Você voltou para encontrá-lo, mas, infelizmente Ulisses está morto. Desde que Isaura lhe contou a verdade sem rodeios, a notícia a deixou em estado de choque.

Margarete o examinou vagarosamente, sem distinguir a sua fisionomia:

– Então, quem é você? Como sabe de tudo isso?

- Sou Emanuel, o marido de Isaura, seu cunhado. Depois que ela me contou tudo, saí a procurá-la. Venha comigo, está toda molhada. Do contrário vai apanhar um resfriado.

Foi como se alguém a tivesse esbofeteado para livrá-la de seu estado de exaltação. A chuva continuava a cair, fininha, gelando-lhe o corpo. Mais uma vez pensou, de alguma parte Ulisses parecia compartilhar de suas lágrimas.


Capítulo V


Era o mesmo aeroporto, as pessoas corriam apressadas e indiferentes de um lado a outro. Enquanto aguardava a sua chamada de voo, Margarete circunvagava o olhar como se nada importasse.

Desta vez queria alguém à sua espera. Telegrafara para o teatro, prevenira Carlos de sua chegada. Ninguém como ele para afastar as sombras e a tristeza que a dominavam;. Com um suspiro aliviado avistou-o enquanto descia os últimos degraus, ele correu ao seu encontro muito emocionado.

Enquanto o via aproximar-se cheio de alegria, o rosto crispado Margarete rememorava a conversa desagradável e a risada sarcástica de Dona Cristina.

– Eu sabia! – gritou Carlos, apertando-a nos braços – Sabia que aquele cretino não ficaria por tantos anos mofando a esperá-la. Bonitão e cheio de grana deve tê-lo encontrado casado e cheio de filhos, acertei? Você voltou tão depressa, meu bem... Conte-me logo a verdade!

Embora houvesse estremecido, Margarete não deixou transparecer no rosto pálido o choque provocado por aqueles comentários bem humorados. Sorriu vagamente, deixou-se abraçar e beijar sem satisfazer a sua curiosidade. Carlos sentiu-se encorajado:

- Você está vendo quanto estou feliz ao vê-la? Morri de saudades. Agora precisamos recuperar o tempo perdido, desperdiçado à toa por culpa de seu eterno namorado de interior. Doravante, não acha que precisa pensar mais um pouquinho no seu Carlos? – interrompeu-se, pois haviam alcançado os portões de saída.

Rente à calçada deslizou vagarosamente o sedan reluzente, dele emergiram os amigos de sempre, os companheiros de teatro.

Cercaram-na de exclamações efusivas de boas vindas, gritos, abraços calorosos e perguntas embaraçosas. Margarete correspondeu e esquivou-se com acenos e monossílabos, o rosto impenetrável. Atribuída ao cansaço de viagem, a mudança de comportamento passou quase despercebida naquele momento, no entanto, com o transcorrer dos dias, crescente cadeia de murmúrios e cobranças começou a cercá-la.

Transformara-se numa boneca sem alma, podia ser atirada de um lado a outro sem reações relevantes. Nos ensaios ninguém se entendia mais. Por sua causa cresciam as queixas veladas; provocou insatisfações de colegas de palco, alheia a tudo e a todos. Da artista impecável, habituada a roubar todas as cenas e provocar delírios da plateia restara aquela boneca sem alma. Nem os gritos e reclamações de Carlos conseguiam surtir efeito, trazê-la ao presente. Comportava-se estranhamente, mergulhada em si mesma.

Fracassara o domínio que antes exercia sobre ela. Acostumado a explodir em impropérios diante de atuações medíocres de outros atores, ele se perguntava o que estaria provocando o seu incompreensível descaso. Entretanto, faltava-lhe a necessária coragem para dizer-lhe umas verdades.

Carlos a amava demais e pouca importância atribuía à sua aparente perda de talento, desde que estivesse ao seu lado. Realizara a versão, produzia e dirigia praticamente sozinho a nova peça; esperava transformá-la em mais um sucesso; precisava de Margarete como a sua estrela.

Após três exaustivas semanas de ensaios quase infrutíferas, ele se convenceu de estar lidando com sério problema, havia algo errado que precisava descobrir. Depois de repetirem a cena pela quinta vez sem obter resultado satisfatório, o par de Margarete, talento recém-descoberto e considerado uma nova promessa a brilhar nos palcos, ameaçou desistir, preferia contracenar com outra mais interessada. Concordou com as reclamações do rapaz; irritado, preparou-se para repreendê-la. Subitamente, ela prorrompeu em choro convulsivo incontrolável, autêntico. Assustado, Carlos suspendeu o restante do ensaio e levou-a para o seu gracioso, minúsculo e aconchegante apartamento.

Sem dizer palavra acompanhou-a até o elevador, enquanto esperavam, arriscou:

- Você já deve saber por que vim trazê-la. Há muito tempo estou à espera de uma oportunidade, precisamos ter uma conversa franca.

Margarete continuou cabisbaixa, pareceu não ter escutado.

Ele insistiu:

- Se você quiser, posso arranjar alguém para substituí-la nos ensaios. Tire uns dias de férias. Vá às compras, espaireça para colocar as ideias de volta aos trilhos, estou disposto a esperar. Vai lhe fazer bem. É a primeira vez que a vejo assim, alheia, indiferente. Caso prefira guardar segredo sobre o que a incomoda, isso é com você. Mas, confesso, estou desiludido, pensei merecer a sua confiança.

Quando se calou sentiu-se aliviado, livre de um peso guardado há muitos dias.

Entraram no elevador; ela continuou silenciosa e cabisbaixa. Desceram, levou-a pacientemente até a porta, repentinamente Margarete comentou com ironia:

- Todos devem imaginar que nós somos amantes.

Surpreso, Carlos rebateu:

- Talvez. Porém, nós sabemos que isto não é verdade. Você é a única culpada por essas insinuações. Tenho-as escutado há anos. Por mim, já estaríamos juntos, casados ou não casados, desde quando nos conhecemos. Ainda é possível recuperarmos o tempo perdido.

A tentativa de apoderar-se de suas mãos provocou-lhe brusco recuo.

- De que forma? – ela perguntou com olhar distante, estranho.

- O que está acontecendo com você? - espantou-se - Parece há milhas de distância, não a reconheço mais. Case-se comigo! Já estou farto de esperar. Sabe como sou conhecido? São Carlos. Virei o santo da paciência, essa é muito boa! Definitivamente, você mudou bastante. Está esquisita desde quando voltou, por que não me diz o que houve por lá? Estou pronto a fazê-la esquecer o doutorzinho. Seja minha mulher, Margarete!

Enquanto o ouvia, o seu rosto transfigurou-se; reagiu cheia de rancor:

- Não fale dele, deixe-me em paz.

Girou a chave na porta e entrou. Alarmado, cada vez mais surpreso Carlos acompanhou-a:

– O que a fez ficar tão furiosa, por que não me conta? – enquanto falava, ligou o interruptor para enxergá-la, os seus olhos estavam fuzilantes.

Estremeceu ante a suspeita repentina: teria enlouquecido? Pobre querida, o regresso em busca de um amor perdido no tempo a afetara demais.

– Por que razão não quer que eu fale de Ulisses? – indagou, tentando vasculhar-lhe a alma com os olhos.

Pela primeira vez desde que voltara Margarete o fitava abertamente. Notou em seu olhar profundo ressentimento:

– Você não merece falar dele. Foi por sua causa que o abandonei. Se não tivesse aparecido em minha vida hoje estaríamos felizes, mas não, Ulisses está morto. Morto, entende? O meu Ulisses não existe mais... – começou a chorar convulsivamente.

Carlos não sabia o que fazer para acalmá-la. Angustiado, enlaçou-a pelos ombros, acomodou-a na cadeira:

– Pobre querida... Por que não me contou logo?

- Era um assunto só meu. Você haveria de celebrar por ver-se livre dele. Eu o amava tanto, não posso mais viver agora que ele se foi.

Cada vez mais penalizado por vê-la desfeita em pranto, Carlos gostaria de dizer-lhe palavras ternas para fazê-la compreender quanto precisava de seu amor. Conteve-se, antes de tudo era preciso ajudá-la a livrar-se do errôneo sentimento de culpa, que a martirizava tão cruelmente.

– Tire essa bobagem da cabeça. Ninguém morre de amor, muito menos um homem inteligente como Ulisses - afirmou em tom persuasivo - Acredite-me, estou muito triste porque ele está morto, era um grande sujeito, porém, não posso permitir que você continue a carregar esse remorso. Se ele morreu, é porque estava gravemente doente, não por sua culpa.

- Eu tinha certeza como você encararia dessa forma a notícia da morte de meu Ulisses. Por essa razão preferi calar, guardar essa dor insuportável. Você me convenceu a deixá-lo.

- Espere aí. Não queira incluir-me também nessa paranoia, ninguém a obrigou a vir embora comigo! – defendeu-se, subitamente exaltado.

Ela reagiu no mesmo tom:

- Fique tranquilo. Não preciso jogar o meu sentimento de culpa sobre ninguém, mas, se não fosse por sua causa, jamais teria deixado a minha terra nem o meu Ulisses.

- Por favor, se acalme! - implorou - Ouça-me, nem eu, nem você, ninguém é culpado pelo que aconteceu ao doutor Ulisses. Já disse e repito, ele estava doente e morreu. Ponto final. Raciocine com lógica e volte à realidade, minha querida! Estamos discutindo à toa. Você está viva, eu também, continuo maluco por você. Eu a amo feito louco. Preciso desesperadamente de você, case-se comigo, esqueça Ulisses de uma vez e sejamos felizes!

- Não posso. É impossível esquecê-lo...

- Pare de dizer tolices, os mortos não voltam. E nada mais nos separa - sentou-se no espaldar da cadeira e alisou os seus cabelos com doçura - Vou falar francamente, se ele a amasse de fato, teria impedido de qualquer jeito que você partisse, teria movido céus e terra até se aproximar de novo. No lugar dele, era assim que eu teria feito. Lutaria com todas as forças para recuperar o seu amor, para retê-la ao meu lado. Não passava de um moloide...

- Prefiro parar de discutir, estou muito cansada... Por favor, preciso ficar só.

Margarete correu para o quarto. Por alguns instantes Carlos ficou paralisado, desnorteado. Logo se recobrou, foi encontrá-la sobre o leito soluçando. Reprimiu o desejo de confortá-la e retirou-se, fechando a porta suavemente.



Capítulo VI



Ao chegar ao teatro no dia seguinte, Margarete encontrou o bilhete de Carlos: “Minha querida, tive de viajar, provavelmente ficarei ausente por dois dias ou três. Sempre seu!”.

Sem contar a ninguém os seus planos, enquanto o curto recado era lido por ela, Carlos embarcava com destino a terra onde Margarete nascera. Tencionava descobrir os motivos verdadeiros da morte de Ulisses, e não descansaria até destruir todos os obstáculos que ainda os separavam.

Detestara aquela cidade desde o primeiro momento quando abrira os olhos no leito de hospital onde a conhecera, por ter chegado ali inconsciente, depois de sofrer o acidente com o seu carro em rodovia próxima. Sentira imediata aversão ao lugar.

Depois da aterrissagem do avião ele percebeu, contrafeito, a razão de tantas cambalhotas durante a viagem. Fazia um frio terrível, o completo nevoeiro e a umidade na atmosfera as provocaram pela ultrapassagem em nuvens carregadas.

Aquele prometia ser um dia de mau presságio, não propriamente azado à espécie de sindicância que o trouxera: vasculhar o passado de um defunto muito especial, expulsá-lo de uma vez do coração de Margarete.

Entretanto, o mau tempo pouco ou nada conseguiu afetá-lo. Carlos dirigiu-se resoluto ao encontro de sua meta, indiferente aos olhares curiosos, habituais em cidades pequenas por suas roupas e bagagem.

Aquela cidadezinha podia orgulhar-se em possuir um hospital realmente digno, asseado e de atraente fachada. Revelava o bom gosto de quem o projetara. Assim conjeturava Carlos ao descer do táxi e atravessar rapidamente o caminho entre o verde gramado defronte ao edifício imaculadamente branco. Andou pelo saguão até descobrir o orifício de um balcão circular envidraçado, atrás dele a touca de uma enfermeira movimentou-se ao cumprimentá-lo. Avizinhou-se:

- Poderia informar onde posso encontrar o diretor? Preciso falar-lhe com certa urgência.

Pediu com um sorriso simpático, que a moça retribuiu e indicou a porta no final de extenso corredor. Preparou-se para atravessá-lo, estacou quando a ouviu anunciar:

- Talvez o senhor tenha de esperar um pouco, há esta hora o Doutor Antunes pode estar na sala de cirurgia. Se quiser, posso tentar descobrir pelo interfone.

- Não é preciso, muito obrigado. Esperarei o tempo que for necessário, vim especialmente para isso. Se me permite, irei ao seu encontro.

- Como quiser. Se conseguir localizá-lo para o senhor, a quem devo anunciar?

- Carlos Antenor, diretor e agente teatral. Diga-lhe, é um assunto particular.

Suspirou enquanto sentava disposto a esperar. Quase duas horas depois viu o homem de elevada estatura, jovial apesar de sua cabeleira grisalha, entrar na sala. Cumprimentou-o sorridente:

— Gervásio Antunes ao seu inteiro dispor. Perdoe-me fazê-lo esperar, mas, valeu a pena, a cirurgia foi muito feliz. Por favor, volte a sentar. Em que posso ajudá-lo?

Trocaram um aperto de mãos e Carlos acomodou-se:

– Compreendo perfeitamente, a enfermeira já havia avisado onde o senhor poderia estar. Talvez ela tenha adiantado alguma coisa – começou - Preciso saber o motivo da morte de Doutor Ulisses Jordão, o médico que me socorreu, há dez anos, quando precisei deste hospital. Vim exclusivamente porque preciso esclarecer tudo, com a sua ajuda, naturalmente.

O diretor franziu o sobrolho e exclamou:

- Mas, isto aconteceu há bastante tempo. Para quê o senhor está interessado em esclarecer as razões da morte de Doutor Ulisses? Afinal, quem é o senhor, algum repórter?

- Simplesmente porque, antes, eu desconhecia esse fato. Fui praticamente o seu primeiro paciente, tornamo-nos amigos. Ninguém pode avaliar o que representou esta notícia para mim. Estou inconformado, enquanto não souber a verdadeira causa continuarei a procurar até descobri-la. Perdoe a insistência, será que o senhor poderia ajudar-me?

- Ainda não me disse quem é... – estranhou o médico.

- Carlos Antenor, diretor e agente teatral. Na época em que sofri o acidente, tive a sorte de encontrar aqui o Doutor Ulisses. Por favor, diga-me: de quê ele morreu?

- Já que insiste... - aquiesceu o Doutor Gervásio caminhando para a sua cadeira atrás da escrivaninha - Na época, todos sofreram bastante a sua perda. Além de meu genro e excelente caráter, Ulisses era ótimo profissional, perdemos um de nossos mais ilustres colaboradores, esforçado e competente. Foi vítima de súbita síncope cardíaca, mal encoberto e congênito, embora tenhamos usado de todos os recursos, nada conseguiu salvá-lo.

Carlos encarou o médico, sem querer acreditar no que ele acabara de afirmar; pensava em Margarete, todo o sentimento de culpa terminaria quando lhe contasse. O “seu” Ulisses havia esquecido o grande amor por ela rapidamente e casara-se com a filha do diretor daquele hospital.

- Ainda gostaria de um pequeno esclarecimento – insistiu ele – Perdoe a minha ignorância, poderia ser mais explícito? O que provocou a síncope a que se referiu?

Doutor Gervásio tamborilou nervosamente sobre a mesa, no entanto segurou o sorriso:

- Vou tentar explicar melhor, apesar de, com toda franqueza, ainda me sentir intrigado com o seu interesse em vasculhar o falecimento de meu genro e sobrinho. Ele veio para cá ainda como residente, se não estivesse morto, quem sabe, agora estaria sentado nesta cadeira.

- Sem pretender desmerecê-lo, concordo plenamente. Ulisses era um grande sujeito, não resta dúvida.

- Infelizmente - continuou o médico - Tal como aconteceu com o seu pai e meu cunhado, também ele não superou os problemas cardíacos. Ambos faleceram ainda jovens, no auge da carreira, de causa idêntica. Ulisses sentiu bastante quando a minha filha perdeu o menino. Começou a definhar até o ataque fulminante. Deixou a Marion, viúva aos vinte e três anos, e uma filhinha que é um encanto.

Finalizou a explicação com o olhar carregado de tristeza. Carlos levantou-se para as despedidas:

- Agradeço-lhe a paciência e a confiança, Doutor. Perdoe-me tê-lo feito perder tempo para recordar de um fato triste e tão particular. Nem sei como retribuir, não calcula quanto apreciei conhecer toda a verdade.

Doutor Gervásio o acompanhou até a porta, sempre simpático:

- Poderá retribuir meu amigo, com um pouco de sinceridade. Desconfio de alguma coisa, mas, preferia ouvi-lo falar sobre a verdadeira razão por que veio procurar-me.

- Mais uma vez eu lhe peço perdão - rendeu-se Carlos - Usei este subterfúgio de grande amigo, porque precisava saber a verdadeira razão da prematura morte de Ulisses. Por haver me ajudado tanto, o senhor merece conhecer o real motivo: fui também o rival no amor entre ele e Margarete.

- É claro! Desde quando o vi, procurava descobrir no escaninho da memória de onde o conhecia, até que, repentinamente lembrei. Só estava esperando por uma explicação plausível – declarou o médico.

- Pois é. Isso faz as coisas se tornarem mais fáceis – replicou Carlos - Senti necessidade de vir pessoalmente porque queria muito ajudá-la a conformar-se e deixar de sofrer remorsos injustificados. Desde o primeiro instante, foi amor na hora. Arquitetei levá-la comigo quando partisse, lutei com todas as forças contra Ulisses. Ele foi o seu primeiro amor. Margarete se tornou atriz de primeira grandeza, infelizmente para mim, tive de pagar um preço amargo, ela se manteve fiel às ilusões do passado. Planejava regressar para os braços de Ulisses, certa de que ele continuava a esperá-la. Há pouco tempo, finalmente conseguiu realizar esse projeto. Aceitei esta situação ridícula, esperava que o encontrasse casado, em vez disso, deparou-se com a sua sepultura.

- A minha mulher Regina havia me contado essa história – respondeu Doutor Gervásio - É a irmã de Cristina, a sogra de nossa filha. Apesar de temperamentos tão diferentes, elas se dão muito bem. Lamentamos estar ausentes durante a visita de Margarete, deve ter sido um golpe terrível. Pobre moça...

- Sim, foi uma paulada - concordou Carlos muito à vontade - Ela está sofrendo o diabo, só de imaginar que ele definhou por sua causa. Por esse motivo decidi lutar para tirar as coisas a limpo e exorcizar tamanha obsessão.

- Faço votos que tenha êxito. Margarete sempre me pareceu uma pessoa valorosa. É uma pena que ela ainda não tenha percebido o tamanho do amor que o senhor lhe dedica.

- Em breve ela descobrirá, Doutor! Não avalia quanto esperei por isso – afirmou Carlos cheio de confiança - Confesso-lhe, estava certo como ela encontraria Ulisses casado com outra e caísse na vida real, percebendo quanto a amo. Não costumo lidar com fantasmas. Contudo, lutarei contra qualquer coisa, por ela. Peço-lhe desculpar minha franqueza, afinal, estamos falando de seu genro e sobrinho. Já ocupei demais o seu tempo. Mais uma vez, muito obrigado.

Eles trocaram caloroso aperto de mãos, em seguida Gervásio o acompanhou pelo corredor até chegarem à sala de cirurgia, ali se despediram novamente. Carlos ganhou a viela em direção ao nevoeiro da rua.

Se parecia verossímil a sua aversão pela cidade porque nas suas imediações quase perdera a vida, não poderia dizer o mesmo da velha e inesquecível casa de aspecto semiabandonado. Despertava-lhe grande ternura, pois sabia o quanto Margarete prezava o recanto onde nascera.

O jardim de outrora quase desaparecera, sufocado por emaranhado de ervas daninhas de todos os tipos; cresciam à vontade, enroscavam-se umas às outras, subiam nos muros e ampliavam a impressão de casa abandonada. Sabia que era habitada. Empurrou resoluto o portão enferrujado, percorreu com rápidas passadas o estreito caminho sob o caramanchão. Quando ergueu a mão para bater na porta, esta se abriu e uma mulher ainda jovem, morena e robusta apareceu.

– Pela janela eu o vi chegar, o que está fazendo aqui? – perguntou sorridente

Carlos recobrou-se depressa da surpresa provocada por aquela aparição inesperada e respondeu no mesmo tom:

- Fico feliz porque me reconheceu. Isso vem provar que não envelheci tanto como andam dizendo por aí. E você, também não.

- Há algumas semanas Margarete nos surpreendeu, depois de tantos anos decidiu aparecer sem avisar. Por falar nisso, ela já ligou muito preocupada, querendo notícias suas. Agora é você. Por que não vieram juntos?

Às suas costas surgiram duas crianças esguias, quase da mesma altura e muito parecidas. O menino o encarava com ar travesso, a menina aparentava ser endiabrada, arisca; escondia-se sorridente atrás do irmão. Eram os gêmeos de Isaura e Emanuel.

– Não me convida a entrar? – rebateu Carlos, correspondendo ao sorriso das crianças.

Isaura assentiu falsamente contrafeita, afastando-se para deixá-lo passar. Eles se conheciam desde os tempos em que estivera na cidade. Isaura torcia discretamente para que a irmã percebesse quanto Carlos poderia fazê-la feliz. Pelo trajeto até a cadeira, ele observou a boa disposição dos móveis e o asseio do ambiente, em contraste com o desleixo lá fora. A mulher sentou-se, Carlos fez o mesmo e perguntou à queima-roupa:

- Onde está o seu marido?

Isaura respondeu com naturalidade:

- Emanuel está trabalhando na oficina, para ver se traz o pão nosso de todo dia. Satisfaça logo a minha curiosidade por estar aqui. Ou se trata de algum problema particular?

Carlos rebateu em tom de troça:

- Antes, não me oferece um café?

Isaura enrubesceu e despachou os filhos com acenos enérgicos.

– Para quê os rodeios? Depois de tantos anos, de repente, vocês começam a vir aqui. Primeiro foi Margarete, agora, é você. Que novidade é esta? O que estão me escondendo?

- Fique tranquila – retrucou Carlos – Tive de vir porque tinha pressa em descobrir toda verdade. Você sempre me considerou um amigo, foi contando com isso que decidi procurá-la. É um assunto algo delicado.

- Vamos lá, homem, diga de uma vez. Por que precisou vir aqui? – indagou Isaura.

- Por que você ocultou de sua irmã por todos esses anos o falecimento de Ulisses? E quando ela a visitou, por que razão escondeu os motivos sobre a morte dele? – rebateu Carlos.

-- Mas, quais seriam esses motivos? Pode dizer-me?

- Não se faça de desentendida, Isaura. Você deixou Margarete ir embora sem lhe contar que Ulisses havia se casado depois de sua partida. Ocultou a verdadeira causa de sua morte, a profunda depressão pela perda de um filho que nasceu morto. Ela vive até hoje desesperada, cheia de culpas. Preciso saber, Isaura: por que motivo a deixou partir sem esclarecer tudo?

Durante alguns instantes ela quedou boquiaberta, pálida, por fim confidenciou em voz sumida:

- Fiz isso na melhor intenção. Quis preservá-la, tentei evitar novas mágoas.

- Desculpe-me, mas, eu não creio nisso. O que esperava ao silenciar sobre o casamento e a verdadeira causa da prematura morte de Ulisses? Não se comoveu ao ver Margarete partir, convicta de ter sido a culpada? Será que fez isso, de propósito?

Isaura reagiu em tom indignado:

- Você deve ter enlouquecido. Por que razão eu faria uma coisa dessas? Minha irmã gostava demais de Ulisses. Fiz o possível para deixá-la em paz, sem sofrer novas decepções. Amo-a, queria protegê-la. Se não tivesse voltado aqui, sequer lhe diria que Ulisses havia morrido. Só lhe contei porque entendi que não tinha outra saída, ela haveria de descobrir tudo.

- Está sendo sincera? - alfinetou Carlos.

- Já lhe disse, preocupei-me em poupá-la. Pouco importa se você acredita em mim – retrucou Isaura.

Em silêncio Carlos a observava, tentando certificar-se de sua sinceridade. Possuía ligeiros traços fisionômicos de Margarete, todavia, longe de possuir a sua fascinante beleza.

Finalmente rendeu-se:

- Está bem. O problema todo é o seguinte: a sua boa intenção provocou grande equívoco. Ela ainda está arrasada, certa de ser a culpada pela morte prematura de Ulisses. Foi uma trabalheira fazê-la contar alguma coisa.

- Como eu poderia prever? Sabia o quanto ainda gostava dele, conheço a sua maneira romântica de apegar-se às lembranças de fatos passados. Apenas com a intenção de poupar-lhe desilusões, preferi silenciar sobre o casamento dele com a priminha rica. Poucos dias depois da partida de Margarete, os dois começaram a desfilar pela cidade, e logo as duas famílias comemoraram o noivado. Tal como Dona Cristina queria, ficou tudo em família. Ah, aquela bruxa!

- Se você tivesse lhe contado como o seu Ulisses a esqueceu depressa, bem antes de morrer, pelo menos Margarete não partiria cheia de remorso e continuaria a sofrer sem motivo – provocou Carlos.

Isaura perdeu a paciência:

- De que forma, sem magoá-la, eu poderia usar de toda franqueza, dar a noticia sobre o casamento de Ulisses? Depois, Margarete nunca acreditaria em mim, era obcecada de amor por ele.

- E o que temos agora? – insistiu Carlos - Sua irmã está completamente transtornada, esquecida de tudo o que lhe ensinei sobre teatro. Se não agirmos rapidamente, vai acabar enlouquecendo por completo.

- Vocês, os artistas, sempre exageram. Fazem tempestade em copo de água, inventam dramas onde não existem. Por meu lado, acredito que com o passar do tempo ela acabará por esquecer.

- Não tenha tanta certeza. Terei de contar-lhe a verdade.

- Afinal de contas, por que vocês ainda não casaram? Evitaria tudo isso - provocou Isaura.

- É fácil adivinhar por que: ela só pensava naquele cretino,. Todos esses anos Ulisses vagou entre nós como sombra maligna. Quero casar-me com ela sem ninguém de permeio.

- Não será esta uma boa desculpa? - insinuou Isaura - Depois de convencê-la a ir embora, você nunca viu muita necessidade para isso. É evidente, durante esses anos todos, você e ela...

Carlos interrompeu-a, impaciente:

- Pare de fazer suposições tolas. Vejo que desconhece sua irmã. Pode crer, a culpa não é minha se até hoje nada somos além de bons amigos. Margarete é uma pessoa especial. Com ela, tudo deve acontecer dentro dos conformes. Arrisquei mil tentativas, mas, todas foram em vão. Lutei contra os ciúmes de seus inúmeros fãs, a rodearem-na com propostas tentadoras, até descobrir que eles nada significam para ela. Cansei de pedi-la em casamento, esbarrei sempre na sombra do agora defunto.

- Muito bem, o seu caminho está livre – retrucou a mulher com deboche.

- Isto é verdade - concordou Carlos com certa tristeza - Se você não tivesse se encarregado de estragar tudo, criando em sua irmã esta obsessão indesejável, poderia ser mais fácil. Uma conversa franca poderia ter modificado tudo, ela estaria desobrigada de qualquer vínculo e me enxergaria. Depois de morto, por incrível que pareça Ulisses ficou mais forte. Isso me desagrada, terei de lutar contra um ser invisível, ectoplasma, um senhor fantasma.

- Sempre fui a favor de um entendimento amoroso entre vocês, está cometendo uma injustiça comigo - rebateu Isaura recobrando o bom humor - A velha bruxa se encarregou de contar uma porção de lendas sobre a morte de seu santo filhinho a Margarete. No mesmo dia em que ela chegou, expulsou-a do palacete como se enxota um cão vira lata, sem dó nem piedade. Não fosse a nora e a menina, aquilo teria se transformado em mausoléu.

- O que mais você sabe?

- Nada de maior importância. Depois de ouvir as barbaridades contadas por dona Cristina, Emanuel a encontrou perambulando por aí, talvez em busca de algum fantasma. Margarete parecia um trapo, fizemos tudo para reanimá-la. Quando foi embora, parecia mais conformada.

- Obrigada por tudo, agora devo ir. Ainda tenho algo muito importante para resolver.

- Quanta pressa! - ironizou Isaura - Desistiu daquele café?

Carlos sorriu e caminhou para a porta:

- Quem sabe da próxima vez? Se precisar de mim, estarei no hotel de sempre. Até breve, Isaura.

Ela o acompanhou até o portão e ficou a observá-lo enquanto partia, o coração confrangido.




Capítulo VII


O aeroporto parecia um deserto àquela hora da manhã. A neblina envolvia a extensa pista e transformava os aeroplanos em monstros gigantes cobertos pela névoa. No salão de espera Carlos passeava impaciente de um lado a outro, ansioso por ouvir a sua chamada de vôo. Faziam-lhe companhia umas poucas pessoas protegidas por roupas grossas que transportavam pesadas malas para o balcão da companhia aérea. Obedientes à chamada seguiram para a escada de embarque; ele fez o mesmo, ocupou a sua poltrona entregue aos pensamentos.

Deixara a casa de Isaura disposto a ter uma conversa franca com a dona do palacete, porém não a encontrara. Em seu lugar a linda Marion causara-lhe simpatia imediata, misturada à piedade por tanta juventude e beleza desperdiçadas. Recebera-o gentilmente e explicara-lhe a ausência da sogra, às terças-feiras frequentava chás beneméritos no clube. Mostrara-se inquieta com o seu olhar perturbador que parecia desnudá-la. Para desfazer o seu embaraço, indagou-lhe sobre a visita de Margarete.

Em vez de falar a respeito, Marion empenhou-se em relatar minúcias do desenlace de seu marido e dos sentimentos de Dona Cristina, inconformada com a perda de seu único filho. Cheio de paciência ele a ouviu, depois se retirou nem um pouco comovido, decepcionado por não haver encontrado a quem procurava. Detestou a mãe de Ulisses mesmo sem tê-la conhecido, por ter espezinhado os sentimentos de Margarete.

A doce voz da aeromoça devolveu-o à realidade:

- Olá, está tudo bem?

Encontrou dois olhos verdes num rosto coberto de sardas e um sorriso cativante. Sob a boina aparentava vinte anos; admirou os cabelos longos e sedosos, de um louro suave.

- Vai ficar bem melhor se você sentar um pouco ao meu lado – provocou.

Apesar de suas constantes viagens, nunca esquecia o bordão infalível.

- Sabe que isso é impossível – derreteu-se a moça - Estou muito feliz por estar viajando conosco mais uma vez. Adoro o teatro, sempre que posso, assisto às suas peças. Deseja alguma coisa especial? – adulou.

Enquanto a escutava, Carlos admirava o belo torneado de suas pernas. Fingiu grande tristeza:

- Descartado o impossível, traga-me um café bem forte.

- Trago num instantinho, se me der o seu autógrafo - rebateu a aeromoça no mesmo tom.

- Agora mesmo, e vou cobrar: qual o seu telefone e endereço?

- Que esperança! – esquivou-se a sorridente aeromoça - Posso dizer-lhe o meu nome, Melhor que isso: chame-me de Margarete.

- Ai, ai, ai! Vocês confiam muito nessas revistas de fofocas, não é mesmo? Está bem, aqui está o autógrafo. Vou aguardar o meu café.

Quando a moça desapareceu na cabina, ele recostou-se melhor para ler os jornais. Naquele momento o avião deu violenta queda no vácuo provocada pelo mau tempo, espalhando intranquilidade e pavor entre os passageiros. Logo, tudo voltou ao normal.

Daí a pouco, duas aeromoças reapareceram com os carrinhos de lanche. Tentando aparentar segurança e naturalidade, com rapidez inusitada distribuíram as bandejas, muito solícitas; em seguida desapareceram novamente na cabina de comando.

Mal a portinhola fechou-se, aconteceu o violento impacto; dessa vez o aparelho declinou rapidamente de um lado a outro. Muitos se levantaram inquietos.

De um pulo Carlos percorreu a distância que o separava dos pilotos, invadiu a carlinga sem pedir licença; chegou a tempo de ver gigantescas, inquietantes árvores cada vez mais próximas.

Às suas costas, os demais choravam e gritavam aterrorizados; a confusão generalizou-se, apesar dos esforços da tripulação para transmitir serenidade. Carlos jamais sentira o que experimentou durante aqueles terríveis, indesejáveis segundos, pareceram os mais longos de toda sua vida. Teria adormecido, estaria vivenciando um pesadelo, logo despertaria em sua cama e tudo voltaria ao normal? O mais importante, ela estaria ao seu alcance... Margarete!

Foi o seu último pensamento enquanto o avião vertiginosamente perdia altura, indo esfacelar-se na clareira de cerrado matagal.



Capítulo VIII



Estirada indolentemente no assoalho ainda com o seu velho e confortável pijama, de olhos fechados Margarete ouvia música. Há cinco dias, desde que Carlos deixara o sucinto bilhete, ela se fechara em casa, indiferente aos insistentes telefonemas de seus amigos do teatro convidando-a para os ensaios. Desconhecia os motivos daquela repentina viagem, entretanto, Carlos costumava ausentar-se sem dizer para onde pretendia ir, na maioria das vezes os negócios da companhia o obrigavam àquelas partidas súbitas.

Talvez estivesse à procura de novos cenários para abrilhantar a estreia da peça, e logo estaria de volta. Continuou a esperá-lo tranquilamente, enquanto isso reunia coragem para colocar em prática sua resolução: confessar quanto estava desmotivada para representar o papel que ele lhe destinara. Arranjasse uma substituta, precisava de mais tempo para refazer-se; daquela vez teria de passar sem ela. Nada importava menos do que trabalhar em sua nova produção.

Há tantos anos acostumara-se à calorosa amizade, à presença de Carlos,quando ele estava longe os dias pareciam infinitos.

O passar do tempo começava a surtir resultado, a morte de Ulisses a torturava menos; conseguia recordá-lo sem aquela opressiva, insuportável dor;. Devagarzinho as lembranças se transformavam apenas em saudade. A despeito de sua luta interior, Carlos agora era a realidade. Precisava ardentemente de seu afeto, de estar com ele. Surpreendia-se com a ideia de aceitar sua proposta sempre renovada de casamento, antes sequer cogitada. Ansiava por revê-lo e dissipar as impressões desagradáveis daquele último encontro.

O estridente tilintar do telefone interrompeu o recolhimento solitário. Resignada, Margarete levantou o fone do gancho, do outro lado gritou uma voz feminina:

- Margarete, sou eu. Acabo de chegar!

- Quem está falando? - indagou cautelosa.

- Estou aqui, na portaria. Queria certificar-me que estavas em casa. Não reconheces mais a voz de tua irmã?-

- Deus do Céu, que surpresa!

Pela primeira vez Isaura vinha visitá-la. Perguntou-se, por que chegara sem avisar? Os poucos minutos precedentes à sua entrada intempestiva pareceram intermináveis. Admirou-a enquanto atravessava a soleira e corria para os seus braços. O agasalho pesado emprestava-lhe inusitada elegância, sua irmã estava muito excitada.

– Meu Deus, fazia tanto frio lá em casa, e vocês aqui, com este clima tão agradável.

Antes de sentar-se abrangeu o ambiente com um olhar de reconhecimento. Margarete permaneceu de pé por algum tempo, esperava que explicasse os motivos de sua vinda; como demorasse a falar, explodiu impaciente:

- O que aconteceu para te abalares até aqui sem as crianças, sem o teu marido?

- Fique tranquila. Antes de viajar, deixei todos eles muito bem acomodados na casa de minha sogra. Queria estar contigo, numa ocasião como essa – enquanto falava, Isaura levantara-se para examinar melhor o apartamento.

- Do que estás falando? O que houve de tão especial para te preocupares tanto em estar comigo? - insistiu Margarete.

Isaura fitou o rosto de Margarete espantada, como se a visse pela primeira vez. Num relance compreendeu que ela ainda ignorava o desastre. Sentiu-se amargamente arrependida por estar ali, porém, agora era preciso ir adiante. Mesmo se quisesse escondê-la, mais cedo ou mais tarde a notícia chegaria até ela, era apenas questão de tempo, de alguma forma ela acabaria por descobri-la. Precisava pensar depressa. Sempre tão sincera, teria de aprender a fingir. Margarete continuava a fitá-la, apreensiva e curiosa.

- O que houve de especial? - repetiu em tom inexpressivo - Ainda estou tonta depois da longa viagem... Ah, sim: lembrei. Vim para garantir a tua presença na primeira eucaristia dos gêmeos, será no primeiro dia do mês vindouro. Mônica e Roberto te adoram, insistiram tanto, “vai lá mamãe, traz contigo a tia!” Acabei criando coragem e aqui estou. Não aceitaremos desculpas. –

Isaura calou-se, pouco à vontade.

Ficaram se entreolhando; ressabiada Isaura procurava esquivar-se do olhar inquisidor de sua irmã sem obter resultado.

- Vieste apenas por causa disso? Desde quando ganhaste o telefone, é a primeira vez que deixas de usá-lo para comunicar-te. Também poderias escrever... - analisou Margarete - Bem sabes quanto adoro os meus sobrinhos, nunca os decepcionaria. Por que mentes, Isaura? Estás escondendo alguma coisa.

- O que haveria para esconder? Para de imaginar bobagens. Nunca havia te visitado antes, esperava outra recepção... – Isaura parecia uma criança apanhada em falta.

Margarete contemporizou:

- Você ainda me deve uma explicação, está tão desconfiada! Ia me contar alguma coisa muito séria, de repente mudou de ideia. Preciso saber o que é. Vá, deixe de tantos rodeios, conte logo!

Enquanto a ouvia, Isaura segurou a pesada mala e atirou-a com dificuldade sobre o divã. Lutou para abrir o fecho, sem encará-la respondeu:

- Tem toda razão. Você me conhece tão bem, não costumo mentir. Talvez seja melhor dizer logo tudo. Quando se rodeia demais, o golpe é maior, concorda? Além disso, é melhor que seja eu a lhe dar a notícia, outra pessoa poderia magoá-la demais. Prometo, farei tudo para te consolar, não arredarei pé de teu lado - concluiu ofegante, quase atropelando as palavras remexendo no interior da mala.

- Meu Deus! - explodiu Margarete - Estou farta de tanta lengalenga, fala de uma vez!

Sem responder, Isaura continuou a vasculhar a bagagem, dela retirou o jornal dobrado. Limitou-se a colocá-lo diante de seus olhos. Atônita, Margarete o desdobrou e leu as manchetes de primeira página:

Figura de grande destaque do meio teatral entre os passageiros do avião desaparecido. Nevoeiro teria sido a causa do desastre...”.

Prosseguem as buscas para encontrar as vítimas do aparelho sinistrado. Presume-se que não haja sobreviventes...”.

Agarrada ao jornal como o náufrago se apega à tábua de salvação, Margarete leu o restante da notícia, o rosto impenetrável, branco como a neve. Parecia petrificada. Apreensiva, a irmã a observava atenta; inesperadamente ela parou de folhear e sacudiu o jornal a esmo. Com um grito lancinante correu em direção à janela mais próxima. Alçou uma perna para saltar o peitoril.

Isaura precipitou-se em seu encalço, alcançou-a e atracou-se ao corpo de sua irmã com todas as forças. Tentou arrastá-lo enquanto ela resistia loucamente.

- Margarete, minha irmãzinha! Não, não faça isso... Por favor, seja forte! - gritava, puxando-a para o interior do aposento, para longe do perigo.

Rolaram as duas pelo chão num quadro grotesco. Grossas lágrimas corriam pelo rosto desfeito de Margarete, implorava que a deixasse morrer. Isaura sentiu que misturava o pranto ao seu, enquanto murmurava palavras de conforto ao seu ouvido:

- Ainda bem que o Altíssimo estava de meu lado, consegui trazê-la de volta à vida. Você ainda é tão jovem, não tem o direito de fazer uma coisa dessas. Nem tudo está perdido. Lute Margarete, apele para o divino, só Ele pode ajudá-la...

- Você devia ter-me deixado morrer, Isaura – protestou ela soluçando - Carlos era a minha força, o meu único, verdadeiro amigo. Minha vida acabou. Sem ele, o que me resta?

- Ainda há esperança, vamos rezar juntas - animou a irmã - Ficarei ao seu lado, não vou deixá-la sozinha nem por um segundo.

- De que forma terei esperança sem ele? Você não vê, cercava-me de carinho, adivinhava meus mais secretos desejos... Ele era tudo em minha vida, eu estava cega! Estou vazia, Isaura. Por favor, suplico: deixe-me. Preciso morrer, quero ir para onde ele foi.

- Como pode falar tantas loucuras? Eu a ajudarei a viver, tire essa ideia da cabeça. Lute, esqueça tudo. Seja forte, Margarete!

Desesperada, ela se entregou ao desânimo e murmurou, o rosto escondido nos braços cruzados sobre os joelhos:

- Carlos, por que continuo a viver sem você?


Capítulo IX



Há um seleto grupo de pessoas onde Margarete parecia estar incluída, a quem estranhamente foi reservada dolorosas provações. Refletia sobre isso ao som de músicas sacras entoadas por vozes infantis, em meio ao grande número de assistentes e curiosos que haviam lotado a igreja lindamente decorada, muitos estavam ali apenas por sua causa. Começara a primeira eucaristia de Roberto e Mônica. Compenetrados, eles atravessaram a nave entre dezenas de outras crianças; perderam a sisudez ao passar ao seu lado, soprando beijos em sua direção. A singeleza da cerimônia deixou-a muito comovida, chorosa. Tornara-se sensível às pequenas e grandes emoções. Perdera o antigo autocontrole.

Há duas semanas fizera a tremenda viagem de volta em companhia de Isaura. Ela cercou-a de compreensão e carinho, fora insuperável durante aqueles dias angustiantes; jamais haviam sido tão unidas.

Muitas vezes Isaura encarregara-se de expulsar com veemência o enxame de jornalistas, de amigos e curiosos que desejava a todo custo visitá-la em busca de imiscuir-se em segredos nunca revelados sobre a sua relação com Carlos. De uma hora para outra todos se diziam íntimos ou velhos amigos deles dois, na realidade, somente eram simples conhecidos ou totalmente estranhos levados pela mórbida curiosidade.

Nos cestos de lixo atirara cartas, telegramas, revistas e jornais. Interditara insistentes telefonemas, desligara até mesmo a campainha da porta.

Isaura tornou-se a barreira intransponível entre ela e o resto do mundo; enquanto isso procurava convencê-la a voltar.

Quando os ânimos arrefeceram, finalmente, cercadas de malas de todos os formatos e tamanhos elas partiram numa cinzenta madrugada como duas fugitivas. Apenas o sonolento porteiro do edifício foi testemunha. Ajudou-as com a bagagem, e desde então o telefone passou a soar solitário em seu apartamento vazio. Os importunos encontravam a porta sempre fechada.

Viajaram no Cadilac cinza de Margarete, revezando-se no volante durante todo o trajeto.

Regressara ao aconchego de sua querida e velha casa, no entanto, nenhum prazer conseguia sentir por isso. Os primeiros momentos de chegada foram de indescritível tristeza, acrescida por desajeitadas demonstrações de pesar afetuoso que a rodearam.

Nos primeiros dias uma espécie de letargia prolongada a fez dormir por horas seguidas; mal despertava para alimentar-se. Todos procuravam se manter respeitosamente silenciosos para que pudesse repousar à vontade, até as crianças abandonaram o hábito de brincar dentro de casa. Depois da escola escapuliam para as ruas enquanto ela permanecia fechada em seu quarto. Com o passar dos dias lentamente ambientou-se, sentiu abrandar-se a dor, a revolta provocada por haver perdido Carlos.

Iludira-se. Enquanto o tivera ao seu lado perdera anos em busca de respostas para justificar as razões por que continuava submissa e atenta aos seus conselhos e desejos, exceto quando infringiam as barreiras de sua moralidade. O exagerado apego romântico ao passado em companhia de Ulisses seria uma evasiva teimosa, fuga à evidência, à total rendição ao amor concreto oferecido a cada instante por ele? Disso Carlos jamais fizera segredo, desde quando haviam se conhecido.

Chorava agora por ter descoberto, embora tardiamente, como ele persistira em fazê-la enxergar o significado verdadeiro desse sentimento chamado amor, que não escolhe hora ou se apaga quando se deseja. O amor sem cobranças, feito de companheirismo e renúncia desde que estivessem juntos. Alimentara a ilusão de reavê-lo quando voltara à procura de Ulisses, segura de que ele estaria sempre ao seu lado a rodeá-la com afeto e carinho.

Se pudesse voltar atrás tentaria sanar a profunda mágoa. Como teria sido maravilhoso se tivesse reconhecido a sorte de possuir o amor ardente e desinteressado de um homem como ele, e retirado a venda a tempo!

Estirada à sombra amiga de frondosa árvore nos fundos do quintal, Margarete perdia horas com o livro esquecido sobre o regaço, abstraída, relembrava a sua vida passada ao lado de Carlos. Absorta em suas lembranças desprezava o presente ou futuro; descera do palco para assistir ao espetáculo, tornara-se a espectadora de sua vida. Irritava-se com a lentidão das horas, detestava lembrar que haveria amanhã ou pensar sobre ele, uma incógnita que não lhe interessava resolver.

Mônica arrancou-a de seu costumeiro devaneio. A sobrinha surgiu apressada a correr pelo quintal e aproximou-se ofegante:

- Tia Margarete, adivinha quem chegou, há tempos. Está na sala discutindo com mamãe.

- De quem se trata? Diga de uma vez.

- Ouvi mamãe chamá-la de Dona Marion, veio para falar com você, mas, mamãe não quer deixar. Se descobrir que vim lhe contar, mamãe vai ficar uma fera comigo.

Os olhos da menina brilhavam de excitação.

Em meio às reminiscências da rápida visita que Carlos lhe fizera, Isaura contara-lhe também o casamento de Ulisses com a prima Marion. Na ocasião, importara-lhe saber o quanto aquele homem apaixonado buscara o amor sem nenhuma reserva, perdera a vida tentando destruir todos os equívocos sobre a morte de Ulisses e mostrar-lhe como se iludira ao guardar-se para o amor que deixara no passado. Não se revoltara à evidência de quão depressa este a esquecera e refizera a vida com outra mulher; aceitara o fato como decorrência natural.

Num de seus raros e solitários passeios pela cidade, casualmente avistara a jovem viúva no parque, acompanhada por sua filhinha. Margarete julgara Regina a criança mais bonita que já vira. Seu coração enlutado desmanchara-se em ternura, surpreendeu-se a procurar na menina os traços de Ulisses.

Levantou-se decidida a seguir Mônica. Enquanto rodeavam a casa para entrar pela porta dianteira, procurava adivinhar a razão por que Marion viera à sua casa.

Há dois passos da entrada ouviu o tom irritado na voz de Isaura:

- Creio ter sido bem clara. É perda de tempo importunar Margarete. Ainda é muito recente, serviria apenas para fazê-la sofrer mais. Por favor, não insista.

- Por que não me deixa tentar? – replicou a visitante em tom sereno.

Naquele momento Margarete apareceu. Rápida, para fugir aos reclamos maternos a menina escapuliu a correr sobre as folhas secas do quintal.

Ao vê-la, Marion sorriu e suspirou de alívio:

- Graças a Deus está aqui. Até compreendo os cuidados de sua irmã, quem dera se também tivesse uma, assim. Vou falar sem rodeios, preciso muito de sua ajuda. Por favor, perdoem-me por tanta insistência.

Após ligeiro instante de constrangimento mútuo, elas trocaram um aperto de mãos. Pressurosa, Isaura interpôs-se:

- Usei de todos os argumentos para explicar para Marion o seu desejo de ficar sozinha, ela continuou a insistir – desculpou-se, perscrutando o rosto da irmã.

Marion segurou o sorriso e voltou-se para Margarete:

- Como eu já disse, deve ser maravilhoso ter alguém tão zeloso para nos proteger. Embora a ocasião seja delicada, preciso de sua ajuda e não posso esperar.

Deixou-a falar, lembrando a sua condição de viúva de Ulisses, o seu primeiro amor. Ela usurpara o seu lugar; o fato não a proibia de achá-la simpática e muito bonita. Sem nenhuma ponta de despeito admirou-a, nem de longe parecia àquela menina arredia que tivera ocasião de entrever algumas vezes em dias festivos no jardim do palacete.

Com um simples gesto convidou-a a sentar no divã. Marion acomodou-se melhor e continuou a falar, entusiasmada, sem levar em conta sua aparente indiferença:

– Vim exclusivamente para convencê-la a ajudar-me com o grupo de crianças que precisamos treinar até o final deste ano quando apresentaremos o teatrinho da Escola Paroquial, durante a formatura de ABC. A festa provavelmente será singela, linda. Sei que representa muito trabalho lidar com crianças pequenas, porém, tenho um palpite como você dará conta perfeitamente. Se puder contar com sua colaboração, será uma grande honra.

- Vou fazer de conta que não ouvi sua última frase – respondeu Margarete, provando como prestara atenção - E minha resposta é positiva. Gosto muito de crianças, o seu convite veio a calhar, estou cansada de não fazer coisa alguma. Farei o possível para corresponder a tanto entusiasmo.

- Está falando sério? – intrometeu-se Isaura – Talvez você precise de mais alguns dias de repouso, pense bem.

- Não me leve a mal – rebateu Marion - Deixe sua irmã decidir o melhor para ela, entrar em atividade só vai lhe fazer bem. Até logo Margarete, espero-a na escola.

As duas mulheres caminharam juntas pela alameda sob o olhar assombrado de Isaura, e no portão despediram-se cordialmente.



Capítulo X




Naquela tarde ensolarada Marion atravessou o pátio do hospital, depois de caminhar resoluta pelo corredor, entrou sem bater na sala de diretoria. Encontrou o Doutor Gervásio num de seus raros momentos de lazer. Fazia anotações em seu bloco completamente absorto. Aproximou-se para beijá-lo:

- Boa tarde, papai. Está tudo bem?

- Olá, querida. Você demorou a aparecer hoje, e Regina? – indagou o pai sorridente; largou a caneta e convidou-a a sentar.

Marion respondeu:

- Deixei-a aos cuidados de sua avó Cristina. Será que você vai permitir que o visite agora?

Pensativo, uma ruga de preocupação entre os olhos Doutor Gervásio encarou a filha. Refletiu alguns instantes, depois aquiesceu:

- Está bem, vá. Como você é persistente, Marion! Tenha muito cuidado. Se o encontrar dormindo, volte imediatamente. Procure agir com absoluta naturalidade.Às vezes, não é sempre, ele fala dormindo. As recordações o perseguem. Tudo ainda está muito recente. O incêndio, o milagre de conseguir sair vivo do avião antes que explodisse... Enfim, seja paciente. E o mais importante: fique com ele só durante alguns minutos, ouviu bem?

- Não se preocupe, prometo fazer tudo conforme você determinou. Até logo, papai.

A filha tornou a beijá-lo carinhosamente e saiu muito apressada. Doutor Gervásio ficou a olhá-la apreensivo.

Marion abriu a porta e entrou cuidadosamente no quarto.

Ao vê-la, o enfermo abriu um sorriso e comentou para a enfermeira que terminara de injetar medicação ao soro:

- Você perdeu aquela nossa aposta. Não lhe disse que ela viria?

- Ah, andam fazendo apostas às minhas custas? – reclamou Marion com fingido aborrecimento. A enfermeira sorriu e se afastou para deixá-los a sós.

O sorriso apagou-se no rosto do enfermo. Marion aproximou a cadeira da cama e sentou-se; tentando ignorar a súbita seriedade comentou em tom animado:

- Já notei que você não perde tempo. Estava paquerando a enfermeira ou foi apenas impressão minha?

- Voltou aqui para falar de mim e nada mais? – retrucou o doente.

Sentiu impaciência em sua voz, porém não deu mostras de incomodar-se:

- Bem sabe por que vim. Estive com ela! Fiz tudo direitinho conforme combinamos. Foi mais fácil do que pensamos – respondeu Marion.

O seu olhar antes opaco tornou-se brilhante. Ela continuou:

- Margarete aceitou ensaiar as crianças para o teatrinho da formatura de ABC, gostou imediatamente da minha proposta. Posso estar enganada, mas, estou confiante como vai dar tudo certo.

- Conte-me, como ela está? Quando vão começar os ensaios? – indagou o enfermo com ansiedade.

- Prometi ao papai não demorar muito para não cansá-lo, procure não se agitar demais. Uma pergunta de cada vez - aconselhou Marion cheia de cuidados – Margarete parece estar bem, para dizer a verdade estive a ponto de desistir. Isaura fez tudo para impedir a nossa conversa, felizmente a sua amada apareceu e pudemos acertar tudo.

- Não me oculte nada. Por favor, fale, fale mais sobre ela... - suplicou.

- Está numa tristeza de fazer dó – disse Marion com desalento - Embora procure dissimular, ela pareceu-me muito infeliz. Estive a ponto de contar-lhe toda a verdade. Ainda não entendi por que deseja manter tudo em segredo.

- Você não quebraria sua promessa! Lembre-se, por enquanto prefiro que seja assim – inquieto, o doente agarrou sua mão.

Marion arrependeu-se de haver sido tão franca e tentou restabelecer sua serenidade:

- O que é isso? Acalme-se, prometi, não foi? Vou cumprir minha palavra embora ache difícil de entender. Para ambos, seria melhor se ela soubesse.

- Ainda não – cortou ele – Fale mais, conte-me os detalhes do encontro de vocês duas. Talvez de olhos fechados eu possa vivenciar a cena.

- Como já lhe disse, para minha surpresa Margarete aceitou logo o meu convite. Deu-me a impressão de que estava ansiosa por encontrar algo para fazer – relatou Marion entusiasmada - Tem mais: acolheu-me sem nenhum sinal de hostilidade. É um bom sinal, uma prova como eu estava certa. O sentimento deles foi apenas infantilidade, nunca chegou ao amor verdadeiro.

Marion percebeu que ele mantinha os olhos abertos, parecia beber cada sílaba. Subitamente o intenso brilho de seu olhar esmoreceu.

– Já esperava por isso. De qualquer maneira continuaremos a esconder-lhe tudo, até que ela aprenda a conhecer-se melhor.

Marion notou uma ponta de amargura em sua voz e rebateu:

- Se você a tivesse visto mudaria logo de ideia. Eu que nada tenho com a história, fiquei muito comovida. Há um pouco de crueldade no que nós estamos fazendo. Diga com toda sinceridade, não sente vontade de revê-la?

- Mais do que tudo neste mundo - desabafou – Definho e morro de saudades, mas, é preciso que seja assim. Convenhamos, deixei de ser o homem a quem ela conheceu. Sei que é um processo demorado até acostumar-me, primeiro, antes de tentar dividir este fardo com a criatura mais importante de minha vida – tentou sorrir – Desmanche esta careta, vou superar. Está certa como não lhe desperto um pouquinho de medo? – perguntou ele, subitamente em tom galhofeiro.

Marion abriu um sorriso:

- Que pergunta! Pare de dizer bobagens.

- Você sabe como isto não é bobagem. Aquele maldito desastre transformou-me nessa “coisa”. Deixei de ser criança há tempos, e faço força para aceitar minha nova condição para esquecer a revolta – continuou, o rosto crispado pela mágoa - Sempre que estou acordado procuro renovar minha porção de coragem para dividir com mais alguém – interrompeu-se, o rosto crispado pelo desespero.

Marion pensou nos conselhos de seu pai. Era necessário fazê-lo esquecer o seu drama, incutir-lhe um pouco de fé no amor de Margarete.

- Asseguro-lhe, ela ficaria muito feliz e correria para cá quando soubesse que você está vivo. É só o que importa – estimulou - O resto em breve você conseguirá vencer, vai melhorar cada vez mais. Margarete o ama de verdade. Foi preciso acontecer tudo isso para vocês começarem a andar pela mesma trilha. Creia, Ulisses foi uma criancice passageira na vida de Margarete, apenas um sonho de adolescente.

- Ingenuidade sua pensar assim. Ela persistiu nele durante dez anos. Isso é bom para você também, não é? Pensar que Margarete viveu de ilusão – provocou.

- Claro, por que para mim Ulisses foi o melhor homem deste mundo, carinhoso e apaixonado - confirmou Marion com sinceridade - Se Margarete desistisse de sua carreira artística para eles ficarem juntos, eu nunca teria chance de ser a esposa de Ulisses. Reconheço, devo muito a você porque a levou daqui, deixou o caminho livre para que Ulisses me enxergasse e pudéssemos nos casar. Vou empenhar-me ao máximo até reconstruir a vida de vocês. Tentarei retribuir o tempo maravilhoso que nós tivemos juntos, Ulisses e eu.

- Deixe de tentar esconder sua bondade, Marion. Desde quando chegue neste hospital, você e seu pai têm sido de uma dedicação inigualável. Sem ajuda de vocês, já estaria tudo acabado para mim. Se ela algum dia entrar por aquela porta... – refletiu Carlos com olhar novamente triste - Quando fico sozinho é só o que imagino: Margarete diante de mim. Não suportaria vislumbrar horror dentro de seus olhos. Esta é uma das razões por que prefiro que não saiba, vendo-me nesse estado, como ela reagirá? Por enquanto, continue a manter nosso segredo.

Marion replicou em tom animador:

- Vamos mudar de assunto. Papai ainda vai lhe contar, em breve você receberá alta.

- Ele já me falou sobre isso. Confesso, estou angustiado, ainda não sei o que vou fazer lá fora. Tornei-me um meio homem, contudo, será melhor do que continuar trancafiado neste quarto.

- Assim é que se fala, você sobreviveu. Isso deve bastar.

Marion interrompeu a frase ao perceber Carlos olhar com insistência para a porta entreaberta. Doutor Gervásio os observava há muito tempo. Ao ser descoberto ele entrou no quarto, sorriu para o seu paciente e lançou um olhar reprovativo à filha:

- Estou vendo que não seguiram minhas recomendações, aconselhei tanto para deixarem de lado as incômodas lembranças... Vim buscar você, Marion. O meu doente precisa descansar.

Carlos a defendeu:

- A culpa foi toda minha. Quando fico sozinho a depressão aumenta, começo a remoer ideias amargas e travo uma luta comigo mesmo para sustentar a decisão de esconder minha ressurreição e continuar longe de Margarete. Há momentos em que me desespero, desejo tanto sua presença! Somente consigo controlar-me a muito custo – em seguida caçoou - Como vocês sabem, ela me crê no Além, na companhia de Ulisses, talvez de asas brancas e tudo. Oh, sou um desastrado, perdoe-me, Marion. Sempre me esqueço de sua viuvez.

Marion o encarou com um sorriso:

- Fique à vontade – tranquilizou-o - Começo a habituar-me com o seu senso de humor.

Ela caminhou em direção ao pai, que a enlaçou pela cintura:

- Está na hora de você ir, minha filha – aconselhou-a - Logo mais nos veremos em casa, não é?

- Está bem, papai – concordou Marion com um sorriso descrente - Logo mais, se nada atrapalhar seu plantão. Pode acreditar, fiz o possível para equilibrar os humores de seu paciente predileto.

- Até logo mais à noite, querida - insistiu Doutor Gervásio comum sorriso.

Marion lançou um último olhar para o doente, que parecia divertir-se com o seu embaraço diante do médico. Era um bom sinal, ele havia recuperado a natural verve.



Capítulo XI



No princípio tudo foi difícil; as crianças sentiam-se pouco à vontade, pareciam não entendê-la, temiam fazer feio por sabê-la famosa. Três dias de fracassos desanimadores depois, Margarete encontrou os meios de fazer-se entender, de compreendê-las e tudo correu com mais facilidade. Os alunos aprenderam a tratá-la com naturalidade e a ensaiar os seus papeis com desembaraço. Passaram a ajudar-se mutuamente quando acontecia de alguém esquecer sua parte no momento exato.

Começou a gostar do que fazia e amar aquelas pequenas criaturas. À aproximação da estreia, Margarete estava confiante que a encenação correria sem surpresas. Na programação incluíra uma parte musicada antes do primeiro trecho teatral. Enquanto os meninos cantavam, as meninas praticavam o número de dança ecoando a canção.

O número musical seguramente seria o maior atrativo e todos haveriam de sair-se muito bem. Em todo caso, era quase impossível deixar de sentir emoção e alegria às vésperas de Natal. Até o ar que respirava tornou-se diferente, as pessoas sorriam como se, de repente, tivessem descoberto como gostavam de fazê-lo.

Durante aqueles movimentados dias de convivência contínua com as crianças da Escola Paroquial, Margarete relegara ao segundo plano os próprios problemas, mergulhara de corpo e alma nas horas de ensaios; queria fazer o melhor possível. Depois de conhecê-la mais de perto todos a amavam, obedeciam aos seus gestos de comando.

Acostumou-se ao ambiente movimentado, cruzava com muita gente pelos corredores da escola que a cumprimentava com deferência e fazia questão de procurar notícias sobre os ensaios, mostrando confiança no que ela fazia.

Aproximava-se a grande noite. Ela pensava no que faria depois, quando o teatrinho agradasse plenamente e obtivesse o sucesso tão esperado, ela teria de voltar à indesejada ociosidade.

A vida adquirira novas cores; a inutilidade da sua entrega ao sofrimento, o vazio dos anos e de horas perdidas em amargurada solidão parecia tão distante, quase inacreditável. Já não era a mesma. Fizera-lhe bem aquele constante corre-corre, dedicara-se por completo e os resultados seriam compensadores.

Além de lecionar na Escola Paroquial, Marion era grande defensora da fundação de um Grupo Escolar para a cidade. Nas reuniões semanais, muitas vezes Margarete a ouvira discursar e deixara-se empolgar por seu fervoroso entusiasmo; conhecendo-a melhor aprendera a admirá-la. A viuvez prematura não abatera o seu ânimo. Marion abrangera outros interesses, preenchia as lacunas de solidão lutando bravamente por seus ideais. Procurava realizar-se com trabalho; depois da escola colaborava no hospital distraindo os pacientes; os humildes a reconheciam como o anjo real e muito dedicado.

Admirável Marion; desfilava indiferente pelos corredores da escola e do hospital sem perceber quantos olhares interessados a observavam. A condição de filha do diretor em nada a desmerecia diante de seus admiradores anônimos. Entre eles destacava-se o Doutor Ângelo Venturini, o vice-diretor que a seguia com olhares apaixonados.

Margarete sabia quanto estava distanciada dessa imagem angelical. Admirava a nova amiga e a sua abnegação ao próximo, entretanto, dificilmente aceitava as dolorosas lacunas de sua vida. Sobravam-lhe horas torturantes de saudades, revolta e grandes remorsos. Sentia muita falta do homem a quem amara. Tão maior que a saudade fora o arrependimento pela compreensão tardia de quanto tempo havia desperdiçado.

Terminara o último dia de ensaio. Como borboletas levadas pela ventania as crianças dispersaram-se em rebuliço. Intimamente satisfeita Margarete procurou esquecer o extremo cansaço, confiante no sucesso do dia seguinte. Vestia o agasalho antes de sair quando Marion veio ao seu encontro:

– Olá Margarete, posso falar-lhe um instante?

Haviam-se tornado boas amigas, na convivência tiveram oportunidade para descobrir afinidades sem conta e davam-se muito bem. Fora Marion quem a apresentara às crianças encabuladas no primeiro dia de ensaio do teatrinho.

Depois de fechar a porta, Margarete ficou à sua espera. Ela aproximou-se sorridente:

- Está muito preocupada com a estreia, amanhã? – indagou.

- Um pouco. Estou confiante no desempenho das crianças, elas são formidáveis – respondeu Margarete, caminhando ao seu lado.

- Você é que é talentosa. Elas só precisavam de sua experiência, de seu estímulo, dosados por um carinho todo especial como somente você soube dar-lhes – elogiou Marion.

- Não me valorize tanto – replicou Margarete - Nada conseguiria, se as crianças não quisessem colaborar – continuaram a caminhar lado a lado enquanto Margarete prosseguia – Enquanto as orientava, era como se estivesse no lugar de cada uma.

Marion tocou delicadamente o braço da amiga:

- Tenho grandes novidades para contar-lhe. Você se lembra quantas vezes estive a ponto de desistir? Finalmente consegui, sem ônus algum. Aquele terreno pleiteado por tantos anos foi doado para a construção de nosso Grupo Escolar. Ainda esta semana está prevista a cerimônia da pedra fundamental com a presença de nossas autoridades, entre elas, sua ilustre doadora. Como já havia lhe falado antes, o tal terreno fica quase na zona rural, entretanto, não é muito distante daqui. Dá para as crianças, principalmente as que residem na zona rural, frequentarem o novo colégio. Em todo caso, já estou pensando em reivindicar o transporte. Deu muito trabalho, tive de manejar com todas as armas até convencer minha sogra a fazer a doação do terreno.

- Como assim? - estranhou Margarete.

- Você não sabe da maior, acontece que aquele terreno era uma das jóias de nossa família. Dona Cristina é muito ciosa dos bens dos Jordão. Ela era o único entrave.

- Esta é uma notícia maravilhosa! – comemorou Margarete - Fico muito contente por duas razões. Agora você vai realizar o seu grande sonho, não é? Segundo, sua sogra esboça os primeiros sinais de humanidade. Tem certeza como ela está em pleno gozo de saúde?

Marion achou graça, mas absteve-se de considerar o segundo comentário:

- Um de meus grandes sonhos, você quer dizer. Escute Margarete, não era somente sobre isto que eu precisava falar com você.

Marion hesitou, procurando as palavras adequadas. Haviam chegado à rua principal e pararam sobre a calçada. Marion examinou-a com atenção:

- Você já tem planos para depois de Natal? Quero dizer, já pensou no que pretende fazer no ano que vem?

A pergunta pegou Margarete de surpresa, porque ela mesma já se perguntara centenas de vezes. De súbito, encontrou a resposta e disse com naturalidade:

- Vou partir. É isso, vou voltar para os palcos.

- Como assim, partir? - repetiu Marion como se não a tivesse compreendido.

- Sim, voltarei para o teatro – repetiu Margarete com um sorriso - É minha única alternativa, é o que sei fazer.

No rosto da outra se espelharam assombro e desapontamento:

- Está falando sério? Você vai partir e voltar a trabalhar no teatro?

Margarete continuou sorridente, satisfeita consigo mesma por sua decisão:

- Por que o espanto? Não entendo por que está tão surpresa. Afinal, continuo a ser atriz, sempre serei. Nesta altura de minha vida, seria impossível tentar carreira diferente. - Julguei... Pensei... – Marion titubeou. Ainda nada podia contar-lhe sobre o que sabia. Margarete tentou adivinhar os seus pensamentos:

- Pensava que eu nunca mais teria coragem para voltar ao teatro, não é assim? Também acreditava nisso. Por muito tempo, a perda de Carlos anestesiou por completo as perspectivas e anseios que sempre alimentei com relação à minha carreira. Cheguei à conclusão, no entanto, que é impossível viver de outra forma. Está no meu sangue. Preciso, devo voltar ao palco. Por mim e por ele. Seja onde for que se encontre, Carlos ficará muito orgulhoso com a minha resolução.

Mostrou tanta segurança que a amiga sentiu repentino calafrio percorrer-lhe o corpo. Sem que nada soubesse, Margarete continuava a obedecer aos desejos de Carlos. Impetuosamente, de olhos marejados Marion abraçou-a muito comovida:

- Margarete, minha querida amiga. Nunca esperei ouvir isso de você. Estou tão, tão feliz! – acrescentou - E muito mais tranquila ouvindo-a falar dele com tal heroísmo. Sim, você deve voltar. Oh, como estou contente!

- Você é a melhor pessoa que conheço – reconheceu Margarete, surpresa com o súbito entusiasmo de Marion. Continuaram abraçadas a sorrir, valorizando a forte amizade que as unia e nada haveria de destruir. Despediram-se ainda emocionadas.

- Preciso voltar para casa, tenho que ajudar na organização da festa natalina que todos os anos reúne nossa família e alguns convidados na casa de meus pais – disse Marion – Até amanhã, nos veremos durante a festa.

- Sim, até amanhã – respondeu Margarete. Voltou-se para acrescentar: – Afinal de contas, por que nós estamos tão alegres?

Marion sorriu enigmática, antes de responder:

- Porque somos jovens, temos talento e o dia de amanhã pode ser maravilhoso, repleto de grandes, inesperadas surpresas.

Enquanto ela falava, Margarete batera a porta de seu velho carro e quase não ouvira suas últimas palavras.



Capítulo XII



A algazarra de toda manhã esvaiu-se quando terminaram de enfeitar a linda, luminosa e colorida árvore. Extenuada pelo cansaço Margarete estirou-se no assoalho. Suspirando de satisfação enrodilhou-se numa almofada, Mônica e Roberto a imitaram. Os três deixaram-se ficar atoleimados, contemplando o belo resultado de tantas horas de trabalho. De vez em quando as crianças soltavam exclamações de alegria.

- Estamos de parabéns, está mesmo uma lindeza – concordou ela – Porém, lembrem-se: a árvore de Natal é apenas um símbolo profano. O que vocês devem admirar é aquele singelo e encantador presépio que o Emanuel armou desde ontem sob o aparador.

Os meninos concordaram e exclamaram em coro:

- Tia Margarete, você é o nosso melhor presente de Natal – enlaçaram-na pelo pescoço quase a sufocando e rolaram os três no chão em ruidosas gargalhadas. Ela teve de lutar para desvencilhar-se:

– Que fingidos. Sou melhor do que todos os outros presentes? – provocou.

- Muuuito melhor! – enfatizaram os gêmeos - E agora que você ficou alegre, nós estamos gostando demais porque está aqui, e nunca mais vamos deixar que vá embora desta casa.

- São dois aduladores, estão me deixando mal acostumada. Também lhes quero muito. Agora, vamos voltar ao trabalho. Ânimo, que ainda temos muito a fazer! Enquanto eles retomavam o entusiasmo para distribuir o restante dos enfeites pela casa, no palacete dos Jordão, pacientemente Marion terminava de abotoar o casaco de sua filha ouvindo a torrente de lamentações de Dona Cristina:

- É o cúmulo do absurdo. Para que precisa levar uma criança tão pequena ao cemitério, às vésperas do Natal? Isto é morbidez, é um passeio muito triste. Vá você, deixe-a comigo!

Marion encostou os lábios ao ouvido de Regina; a menina meneou a cabeça e desapareceu dentro de casa. Depois de ficar a sós, Marion suspirou:

- A senhora deveria ser a mais interessada neste passeio. Por que não vem conosco? Preciso dar à Regina a imagem toda especial do lugar onde o seu pai descansa. Ela vai se acostumar a frequentá-lo em qualquer época, principalmente no dia em que o seu pai morreu. Se for verdade que existe outra vida, Ulisses gostará de ver-nos e saberá que é lembrado.

- Por acaso quer insinuar que já esqueci o meu filho?

- De forma alguma. Tire isso da cabeça. A senhora deve ter suas razões para recusar-se a vir conosco. Confie em mim, Regina vai gostar de nosso passeio. Até a volta. - Saiba que o meu filho nunca aprovaria tamanha crueldade – insistiu a sogra. - Perdoe-me, precisamos ir. Já estamos atrasadas. Ande, vamos embora, meu anjo! – replicou Marion para a filha que voltara para a sala. Sob o olhar carregado de reprovação de Dona Cristina, ela vestiu o agasalho e saiu.

Obediente, Regina havia se acomodado no automóvel.

– Finalmente conseguimos sair. Queridinha, você não esqueceu nada?

- Não, mamãe. Se estiver falando de nossas flores, elas estão ali atrás, no banco. São muitas e tão pesadas! Será que papai vai gostar? Eu ajudei Luzia a colhê-las do jardim.

- Estou certa como papai vai gostar. Compreenderá que você ainda é muito pequena e haverá de sentir-se feliz pelas flores, mais feliz ficará por você vir comigo. Demoraram pouco sobre o túmulo, apenas o tempo de fazer uma prece e depor o buquê de flores. Com um sorriso sereno nos lábios, o tempo inteiro Marion retinha entre a sua a mãozinha de Regina.

Por dentro, o coração oprimido ansiava por estar só para chorar. Diante da menina era preciso ser valorosa e manter o hábito de todos os anos. Fora quando ela o perdera, na antevéspera do Natal.

No dia de finados deixava a sogra cumprir o mesmo ritual lacrimoso e permanecia em casa; queria livrar a criança de cenas patéticas. Procurava adiar o despertar de tristezas pela sua orfandade. Absorta em suas reflexões, mal escutava o animado palrar da filha. Próximo ao portão percebeu o homem que as esperava. Ao avistá-lo, Regina desprendeu-se para correr ao seu encontro aos gritos:

- Vovôzinho, meu vovô!

Doutor Gervásio a suspendeu nos braços e beijou carinhosamente suas bochechas.

- Olá minha bonequinha, vieram visitar o papai? - indagou com naturalidade.

- Sim, trouxemos tantas flores lindas! Mamãe contou-me que eram suas preferidas, agora, ele deve estar muito contente. Você acha que ele sorri, vovô? Vamos voltar para ver? – convidou a menina de olhos acesos.

- Não é preciso. Se mamãe lhe disse, é tudo verdade. Vim buscá-las para almoçar comigo. Vamos?

Afinal Marion pôde cumprimentá-lo:

- Bom dia papai. Obrigada por ter se lembrado de vir.

- Dei só uma escapulida. O hospital hoje está um rebuliço daqueles, tenho de voltar logo. É difícil de acreditar como se adoece as vésperas do Natal. Tivemos dificuldade de sair para almoçar.

- Quem pode escolher a hora de ficar doente? Se estiver apressado, não percamos tempo. Você disse, tivemos? Quem mais o acompanhou?

Doutor Gervásio observou-lhe o rosto, um largo sorriso nos lábios:

- Convidei Ângelo para almoçar conosco. A família dele foi passar o Natal na Flórida. Ele virá também para a nossa festa natalina.

Marion enrubesceu, mas omitiu-se de fazer qualquer comentário a respeito. Mudou de assunto abruptamente:

- Depois de almoçarmos, pretendo levar Regina para ajudar-me a bancar o Papai Noel aos seus doentes. O que você acha desta ideia, concorda?

O médico sorriu com olhar zombeteiro:

- Está falando sério, quer a minha opinião?

- Lógico. Por que da ironia? – indagou Marion.

Ele confessou:

- E ainda pergunta? Tenho uma filha voluntariosa e linda, diga o que eu disser você fará o que acha certo. Estou errado?

- A quem será mesmo que me assemelho, meu caro papai? – rebateu Marion sorridente.

Depois de entrarem no automóvel, em tom casual Doutor Gervásio comentou:

- Trago boas notícias. Ele concordou em ir ao teatrinho hoje à noite.

Marion quase pulou no assento:

- Verdade? Foi o que ele mandou-me dizer?

- Você conseguiu convencê-lo. Desde o princípio, sabe muito bem, fui contrário a essa farsa. Por mim, Margarete já teria sabido desde o primeiro dia, e teria ajudado até mesmo na recuperação dele. Sabemos quanto o plano moral influi sobre o físico, embora tenhamos de reconhecer que fisicamente, o nosso paciente está bem limitado.

- O senhor, melhor do que ninguém sabe quanto está difícil para mim. Cada vez que a vejo sinto que estou prestes a quebrar a promessa, tenho de me conter para ocultar-lhe tudo – reconheceu Marion - Por causa dessa história de lado moral e psicológico, seja lá o que for, para continuar a merecer sua confiança, com muito esforço tenho me segurado diante de Margarete.

- Entendo, apesar de reprovar esta atitude. Tomara que estejamos agindo corretamente. Será que os temores dele têm fundamento? Agora que a conhece, o que pensa sobre isso? – indagou seu pai.

Marion ficou pensativa por alguns momentos, depois redarguiu:

- Francamente, nenhum fundamento. Margarete continua a pensar nele, a orbitar em torno de seus ensinamentos. Embora desconhecendo a verdade, é como se ela a soubesse. Se quiser mesmo saber, sempre achei uma tremenda maldade deixá-la continuar a crer na sua morte. Mas, devemos agir com cautela, levar em conta o que ele deseja. Já considero um grande avanço ter a sua promessa de que irá ao teatrinho esta noite – comemorou.

Haviam chegado diante da casa de Gervásio. Depois de estacionar o veículo, ele voltou-se para a filha e comentou antes de abrir a porta:

- Fico a imaginar o que poderá acontecer quando aqueles dois se reencontrarem.

- Garanto-lhe, tudo voltará a ser como era antes, sem nenhuma sombra de dúvida. Aqueles dois se amam – assegurou Marion.

O pai lançou-lhe um olhar rápido, cheio de preocupação:

- E você, Marion? Como preencherá sua vida depois que tudo der certo?

Surpresa, a filha hesitou um pouco e reagiu com uma risada. No banco de trás, sem nada compreender do diálogo Regina sorriu por cumplicidade.

- Continuarei a viver, ora. Pare de imaginar coisas - respondeu.

- Está certa de como não é você, quem está enganando a si própria?

- Então é isso que o preocupa? Pois se engana redondamente, papai. Confesso que Carlos é envolvente, fascinante, no entanto não sinto por ele senão afeto. Acredite em mim, tudo o que tenho feito é tentar reunir novamente aqueles dois – disse Marion encarando-o com franqueza - Devo isso a Margarete. Você é testemunha de quanto fui feliz com Ulisses, mesmo sem saber foi ela quem me proporcionou a chance de tê-lo como esposo. Embora tão curto, foi o tempo mais feliz de minha vida. Depois de ter vivido ao seu lado, nunca mais tive razão para sentir-me só, ele foi tudo para mim.

- Ouvindo-a falar desta forma, sinto-me aliviado – confessou Doutor Gervásio - Cheguei a temer por sua tranquilidade. Desconfiava que você estivesse envolvida em emoções perigosas, sem nenhuma esperança.

- Pois bem, pode descansar, papai. Estou sendo sincera, não escondo coisa alguma. E repito: Carlos é um ser humano magnífico, sem dúvida é muito envolvente, grande caráter, mas, ele pertence à Margarete. Sempre o encarei desta forma. Ulisses continua a ser o homem de minha vida, e por enquanto, o mais importante é cuidar desta bonequinha – completou Marion, ajudando a menina a descer.

De mãos dadas, finalmente eles entraram na casa. No saguão, a senhora de cabelos brancos sorriu alegremente ao ver sua neta chegar, em companhia do marido e da filha. Abriu os braços para acolher a menina e disse:

-Você também veio!

Regina correu ao seu encontro, sem notar a presença do homem alto e moreno, de grandes olhos negros que se mantinha discretamente recuado, observando a cena.

Quando o almoço terminou e o café foi servido, Marion despediu-se; precisava aproveitar o restante do dia para a costumeira visita aos doentes.

Ao vê-la encaminhar-se para a porta de saída, o convidado despediu-se também sob o olhar de cumplicidade de Doutor Gervásio que Marion fingiu não ter percebido. Chamou a menina e desceram os poucos degraus com o Doutor Ângelo Venturini nos calcanhares. Por delicadeza, voltou-se para perguntar-lhe se gostaria de acompanhá-las durante a longa caminhada que tencionava empreender, ao que o jovem médico aquiesceu prontamente.

Enquanto Regina tagarelava feliz da vida, Marion seguia os passos de Ângelo, silenciosa, perguntando-se por que cargas d’água tivera aquela ideia, quando poderia ter ido buscar o carro defronte ao cemitério. Acostumada à solidão, sentia-se deslocada com aquela novidade, fazia muito tempo que não andava pela cidade nem por lugar algum ao lado de um homem. Cada recanto por onde eles passavam Marion não podia deixar de notar olhares de admiração lançados sobre o seu par pelas mulheres que aproveitavam o começo de tarde para completar as compras natalinas, que ele não demonstrava perceber. Durante todo percurso lançou-lhe olhares apaixonados; com o rosto o em fogo Marion suspirou de alívio quando chegaram diante do hospital.


. Capítulo XIII



O pano desceu e as luzes acenderam-se. Após um rápido instante de silêncio completo, a plateia rompeu em calorosos aplausos. O grupo de artistas mirins teve de voltar ao palco várias vezes para agradecer àquele público delirante.

Dos bastidores, Margarete assistia com o rosto molhado pelas lágrimas à apoteose que em grande parte devia-se à sua dedicação. Confiara na acolhida unânime ao teatrinho arduamente ensaiado, porém, a ovação excedia suas expectativas. Tão enlevada estava, quando a mão pousou em seu ombro pulou assustada. Encontrou o semblante radiante de Marion.

– O que está fazendo aqui? Todos querem vê-la! – assim dizendo, empurrou-a em direção ao palco.

Quando ela surgiu sob as luzes, todos aplaudiram de pé entusiasmados.

Há tanto tempo insensível àquela incomparável emoção, somente despertada pela resposta imediata dos aplausos, parecia-lhe ter recuperado um bem perdido.

O rosto molhado pelas lágrimas, no meio das crianças Margarete agradeceu vezes sem conta. Olhava agradecida a multidão de espectadores, sentindo que renascera.

De súbito, na primeira fileira encontrou aquele olhar inesquecível, misto de adoração e angústia num rosto transtornado. Parecia querer devorá-la com os olhos. A princípio recusou-se a acreditar que era ele!

Mesmo assim quis certificar-se de que não sonhava. Esquecida de tudo e de todos Margarete não pensou em mais nada, senão em ir ao seu encontro. O espetáculo chegara ao fim e o auditório começou a esvaziar-se. As pessoas procuravam a porta de saída.

Aflita, Margarete tentou avançar entre a multidão, descobriu quanto a resolução seria difícil de por em prática quando esbarrou em todos que se interpunham em seu caminho. Queriam cumprimentá-la, fazer comentários sobre o espetáculo, dizer-lhe palavras elogiosas.

Em desespero, ansiosa por alcançá-lo Margarete retribuía com silábicas evasivas. Num lance de olhar julgou vê-lo entre a massa humana que fluía para fora do teatro.

Chegou à rua e não viu ninguém. Teria sido vítima de alucinação? O excesso de emoções daquela noite poderia tê-la provocado. Desfeita a momentânea ilusão reconheceu, desiludida, Carlos estava morto, era a sua triste realidade.

Voltou-se para atender ao insistente chamado, mais uma vez encontrou Marion. Naquela noite parecia estar sempre à sua procura. Aproximou-se e notou a sua expressão de alívio:

- Desde quando abandonou o palco estou no seu encalço, gritei tanto por você, sem resultados! Afinal consegui aproximar-me, precisamos sair depressa do meio de toda essa gente...

Sem esperar por sua resposta Marion segurou-a pelo braço, arrastando-a cada vez mais longe do burburinho:

- Vamos para o estacionamento. Acharemos nossos carros e teremos chance de nos falar, livres de toda essa barulheira. Preciso lhe contar uma coisa muito importante.

Margarete deixou-se conduzir como criança, convencida de ter visto uma miragem. Nada que a outra pudesse dizer apagaria o seu instante mágico.

Ao chegarem ao estacionamento, Marion deteve-se para observá-la atentamente. Entendera a razão de seu alheamento. Durante alguns instantes torceu os pulsos em aflição, buscando palavras adequadas para lhe contar o que sabia, sem interferir no sentimento afetivo que as unia agora.

- Por favor, tente compreender, talvez se decepcione comigo e não consiga perdoar-me por ter escondido a verdade por tanto tempo – ensaiou em tom cauteloso - Estava presa a uma promessa. Empenhei a minha palavra e tive de silenciar.

- O que está querendo dizer-me? –

O coração de Margarete pulsou diferente, o olhar preso ao de Marion. Esta continuou:

- Eu... Está bem, vou direto ao assunto: eu o esperei até o espetáculo começar, acabei por achar que havia desistido, pois não o vi chegar. Mas você o viu, não foi?

Como em transe, concordou:

- Sim, eu o vi! Acreditei estar sonhando, mas, por que... – Marion a impediu de terminar:

- Não foi um engano – afirmou em tom comovido - Quando estive na sua casa pela primeira vez, fui até lá porque ele me convenceu a procurá-la. Apesar de seu estado, Carlos só tinha pensamentos para você, como estava sobrevivendo sem ele. Fez-me prometer que nada lhe contaria. A gravidade de seu estado obrigou-me a concordar. Combinei com a sua irmã que guardaríamos segredo até o próprio Carlos resolver o contrário.

Com os olhos marejados, Margarete queixou-se em voz quase sumida:

- Como puderam ser tão cruéis comigo? Todo esse tempo você apenas fingia amizade por mim, na verdade apenas seguia as instruções dele, não é?

Marion reagiu:

- Já previa esta reação. Sim, confesso, no princípio foi assim. Depois de convivermos tanto aprendi a estimá-la, acredite ou não, fiz todo o possível para mudar a decisão de Carlos, mas, ele continuou irredutível.

- Ele não queria voltar a ver-me? – murmurou Margarete sentindo-se infeliz.

- Procure se colocar no lugar dele. Foi o único sobrevivente do desastre. Por muitos dias ficou perdido no mato e gravemente ferido, entregue à própria sorte. Quando o trouxeram, só Deus sabe como resistiu. Ninguém tinha esperanças. Papai e toda equipe do hospital tentou de todas as formas, até salvá-lo. Repetia o seu nome em sonhos, só chamava por você nos seus delírios. Mal recuperava a consciência, implorava que não a chamassem. Tivemos de prometer-lhe guardar segredo. O importante era mantê-lo com vida.

- Por que, por que ele deixou de amar-me? – perguntou Margarete cada vez mais triste. Marion silenciou por algum tempo, depois a olhou de esguelha:

- Está enganada - defendeu em tom apaixonado - Ele sofre agora de intenso complexo, carrega traumas difíceis de lidar e somente o tempo poderá ajudá-lo. Embora tenha se habituado à deficiência que a vida lhe impôs, não é o mesmo homem que você conheceu. Muitos dias depois do desastre, quando o acharam já não havia outra solução para sua perna esmagada. Foi preciso amputá-la, isto provocou nele revolta e muita infelicidade. Foram dias de grande desespero, somente quem já sofreu coisa parecida pode avaliar. Mas, você conhece Carlos melhor que eu. Aprendeu a conviver com a outra mecânica, talvez receie despertar em você sentimentos indesejáveis, não quer obrigá-la a aceitá-lo do jeito que está agora, apenas por piedade – parou um pouco, encarando-a e arrematou - Conviveram por tantos anos sem que você demonstrasse amor por ele...

Cabisbaixa, por alguns instantes Margarete ficou em silêncio, desfrutando a profunda gratidão para com o destino que lhe reservara nova chance de ser feliz. Ainda poderia lutar pelo homem a quem amava; ele sobrevivera.

E pensar em quanto tempo chorara sua morte, maldissera tantas vezes a dor irremediável! Agora, Marion afirmara que estava vivo, fora ele quem avistara num relance. A esperança aquecia sua vontade de provar-lhe de quanto o seu amor era capaz.

O seu prolongado silêncio despertou os protestos de Marion:

- Reaja, Margarete! Você precisa ajudá-lo, ninguém mais poderá fazê-lo.

- É tudo o que desejo – cortou Margarete - Antes de qualquer coisa, eu preciso encontrá-lo e você vai me levar até ele, Marion.

A súplica dissipou as últimas dúvidas de sua ouvinte.

- Ele teve coragem de vir até o teatro – refletiu Marion em voz alta – No entanto, ao testemunhar quanto você foi brilhante arrependeu-se e decidiu fugir. Deve ter sentido medo de encontrar piedade em seus olhos, ou quem sabe, que você não o aceitasse como é agora?

- Ajude-me, Marion! – suplicou Margarete - Você sabe onde ele está. Por favor, diga-me!

- Ainda está em tratamento, deve ter voltado para o hospital – respondeu Marion – Antes de ir, deixe-me conversar com ele. Preciso contar-lhe como ficou feliz ao revê-lo. Vou preparar o encontro de vocês, e o convencerei da sua disposição de ir ao seu encontro.

- Acredita mesmo que seja necessário? – duvidou Margarete.

- Confie em mim, vá para casa e espere por notícias – replicou Marion.

- Está certo, embora preferisse surpreendê-lo agora mesmo, mostrar-lhe quanto me sinto culpada por tudo o que lhe aconteceu. Não sei o que faria sem você – confessou Margarete - Por que é tão bondosa comigo?

- Eu lhe devo muito, querida – respondeu Marion enigmática -. Algum dia nós conversaremos melhor sobre este assunto. Mas, isto é o que menos importa agora. Vá para casa. Tenha paciência e espere, farei tudo para convencê-lo de seu amor.

- Sim, é importante que ele saiba – disse Margarete de olhos brilhantes – Mal posso esperar para dizer-lhe quanto o amo, como estou feliz em saber que sobreviveu ao desastre. E pouco importa se perdeu uma perna, com a força de meu amor o ajudarei a conviver com esse problema. Estou tão ansiosa para vê-lo! Não sei se aguentarei a espera.

- Logo estarei de volta para levá-la comigo - afirmou Marion - Até logo, Margarete!

Enquanto ela se afastava, Margarete sentiu intensa alegria.

Depois de tanto sofrimento era maravilhoso acreditar e ter esperanças de ser feliz. Foi para casa onde a esperavam Isaura, Emanuel e os filhos para a ceia natalina. A cálida brisa da noite contribuiu para aumentar sua confiança no futuro.

Quando estacionou diante da casa avistou as janelas iluminadas e ouviu os sons diversos de vozes e cânticos vindos de seu interior. Sorriu. Eles haviam começado sem ela. Era noite de Natal.

Carlos vivia...

Agora podia entender a alusão que Marion lhe fizera na véspera. Deu-lhe razão, aquele seria o mais lindo Natal de toda sua vida. Pobre querido, ela bem merecia que ainda duvidasse de seu amor.

Deslizou mansamente para fora do assento, destravou o ferrolho do enferrujado portão e caminhou rapidamente pela alameda florida, fracamente iluminada pelas luzes que vinham do interior barulhento de sua casa, o coração cheio de esperanças.

Abriu a porta e naquele instante descobriu para onde ele havia fugido. Entre as pessoas de sua família que estavam em volta da mesa, Carlos a esperava, o rosto radiante de amor e promessas.

Recife, 18 de maio de 1955.

Maria da Conceição Cardim Pazzola.

Atualizado em maio/agosto de 2009.

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