quinta-feira, 30 de outubro de 2008

O JARDIM


Ilha da Sardenha, arquivo do Google


Durante o curto espaço de tempo de namoro ele não perdia ocasião de falar sobre o jardim onde deixara as melhores lembranças da terra em que nascera. O jardim da avó para onde fugia quando menino. Ela o ensinou a plantar e colher, a abrir massa, aprendeu também a fazer crochê e bordado e disso não se envergonhava. Com as sobras de massa modelava pombos, para provar que sabia retirava o miolo do pão, em poucos minutos os dedos ágeis mostravam que não haviam esquecido. O jardim para a liberdade absoluta, eu me perguntava como podia um jardim ser tão especial até compreender que falava do que chamamos o sítio, fazendinha ou roça.

Um dia levou-me a conhecer onde existira o inesquecível jardim de sua nonna. Ficamos abraçados de olhar melancólico sobre a região montanhosa, coberta de verde sem vestígios da casa ou do jardim.

Nos passeios pelo centro do Rio sempre dava um jeito de ficarmos sozinhos. Aproveitava para lembrar a infância feliz e a juventude atribulada na caserna. A guerra deixara marcas difíceis de esquecer.

Uma noite de verão na praça Paris, mergulhado em recordações, o rosto sério e o olhar distante divagava sobre o passado. Escutava-o refugiada em minha timidez quando ergueu o olhar, interrompeu o que dizia e começou a cantar, esquecido do lugar público e movimentado:

“Aveva um bávaro color zaferanno e na matina color ciclamino”...

Sorri sem compreender, ele tocou na gola branca sobre meu vestido vermelho e perguntou: Por que usa isso? Vai me esquecer para ser freira?

Imitei-o e o passeio prosseguiu assim, dois lunáticos, ele cantava primeiro, eu repetia sem entender nada até os nossos acompanhantes surgirem numa curva da praça repleta de casais.

Conceição Pazzola 30/10/2008

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

CIÚME (2)


Foto, Ravenna Pazzola

Nem sempre é percebido de imediato, mas se manifesta de várias formas. A diferença de idade nunca me pareceu problema, no entanto para ele a minha juventude era um fator a considerar. Ainda recém-casada, habituada a freqüentar a missa dos domingos achei que podia fazê-lo, devidamente informada fui à igreja mais próxima de onde morávamos. Santa Tereza é um dos mais bonitos recantos do Rio de Janeiro, um paraíso à parte, parecia-me estar num conto de fadas ao ver lá em baixo a cidade, a baía da Guanabara e bem perto, o Corcovado.
Quando a missa acabou, misturada aos fiéis desci a escadaria, pensativa, não o vi de imediato. Antes de sair de casa o deixara a dormir tranqüilamente, fizera o possível para não provocar nenhum barulho. Sorriu antes de rodear-me os ombros num gesto protetor e começamos a andar pela rua estreita sempre enladeirada, como todas de Santa Tereza. A brisa gostosa varria-me os cabelos, embora estivéssemos em pleno verão. Depois de algum tempo em silêncio perguntou:
- Como foi sua missa?
Achei engraçado, o que poderia dizer? Afirmava que era católico, mas não o vira demonstrar interesse em fazer-me companhia.
- Normal, como todas.
Olhou-me com atenção e começou a discorrer sobre a natureza dos padres, apesar de tudo são homens iguais a ele, preferia que deixasse de ir sozinha.
- E todas as outras mulheres, será que o padre tem tanta maldade assim?
- Das outras eu não sei – respondeu depressa – Prefiro que não faça mais isso, me chame.
- Mas você não gosta de ficar lá dentro por muito tempo.
Ele mais que depressa mudou de assunto:
- Vamos tomar um sorvete?
A missa foi o preâmbulo, depois vieram os médicos, os professores, os colegas de faculdade, todos que cruzavam o meu caminho sem que estivesse presente. . Quando não podia acompanhar-me devia contar como tudo acontecera. Estava sempre a esperar com olhar ansioso, do lado de fora ou em casa. Na verdade eu me sentia lisonjeada com tanto cuidado, gostava de vê-lo aparecer sem avisar, tentava não brigar pela falta de confiança, muitas vezes isso foi necessário.
Com o passar dos anos compreendi que não poderia fazer nada além de demonstrar quanto o respeitava. Cheguei à conclusão que seria inútil tentar modificar o seu jeito de pensar e agir.

Conceição Pazzola
29/10/2008

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

SE


Foto, Ravenna Pazzola

Se o milagre da calidez de novo sol

Afugentar tua imagem de minh’alma

Com ela se desfazem ilusões de amor

Chama que alimentou nossas vidas


Se a suave fragrância, o perfume

Chegar mansamente, irresistível

Acordará em ti os teus ciúmes

A ferrugem de amor impossível


Se guardares um pouco de ontem

No conta-gotas de tédio e agonia

São porções esparsas de sonhos

Soltos no desvão de tua alegoria


Sou a tua vida teimosa sem passado

Apenas lampejo de um amor perdido

Sou pequeno ponto no mapa mofado

Retalho de tua história sem sentido



Conceição Pazzola



sexta-feira, 17 de outubro de 2008

O MITO


Foto Ravenna Pazzola




A tormenta diária cessou
Quando o homem afivelou
As suas malas e partiu
Sem um olhar para trás

Sem uma palavra de adeus
Não sentiu nem chorou.

O cachorro do homem correu
Até o alto dos rochedos
E na distância se perdeu
Na preamar desde cedo

Calaram todos os gritos
De mulher e de menino
Perdido estava o mito.

Sem pressa sem desatino
Deu o braço à namorada
E se foi sem dizer nada.



Conceição Pazzola


domingo, 12 de outubro de 2008

CIÚME


La Balaucoire, Renoir


Ao aparecer diante dele de vestido novo ou de ruge e batom Giovanni ria, dizia gracejos, a reação incomodava, no íntimo sentia-me lisonjeada, aquele homem me amava. Desculpava-o pelo excesso de zelo ou de ciúme, porém teria de aceitar-me como sempre fora, vaidosa.

Toda noiva gosta de se fazer bonita na véspera de seu casamento.

Saí do salão de beleza quase ao anoitecer, ao olhar o relógio vi quanto estava atrasada. Combináramos levar mamãe conosco à Santa Tereza para os últimos retoques em nosso minúsculo apartamento de quarto, terraço, sala e cozinha onde receberíamos os convidados depois das cerimônias. Está no plural porque naquele tempo o casamento civil acontecia no cartório, separado do religioso.

Ao chegar ao cruzamento da Rua Senador Pompeu (vizinhanças da Central do Brasil) avistei-o, vinha em direção contrária. Por um triz não passou rente a mim.

Sorri e estaquei à sua frente. Hesitante, mirou-me com espanto, sem palavras. Possuía a rara qualidade de ser espontâneo quase transparente:

- O que aconteceu com seu cabelo?

Em resposta sacudi a cabeça feliz da vida para balançar os cachos, grande sonho de toda mulher que nasce de cabelos muito lisos e respondi:

- E aí, gostou?

Com a sua habitual franqueza o meu noivo desanuviou a carranca, rodeou-me, beijou-me e comentou:

- Ainda bem que vi antes, senão ia achar que trocaram você.


Conceição Pazzola 12/10/2008

terça-feira, 7 de outubro de 2008

A ESCURIDÃO DA NOITE


Ponte da Boa Vista, Recife


A imensidão sombria
De ruas desabitadas
Envolve todas as coisas

Antes que a mão misteriosa
Afrouxe os dedos e derrame
No firmamento grande véu
De inúmeras estrelas brilhantes

Somente ao nascer da lua
Soberana sobre a montanha
O mar vira cortina prateada

Acalanto de casais enamorados
Crentes na eternidade e magia
Do tempo sem mágoa nem dor
Quando raiar um novo dia

Nuvens escuras enciumadas
Escondem estrelas e o luar
Durante a escuridão da noite
Os amores explodem sem parar.


Conceição Pazzola