sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

O COMÍCIO


Às vésperas das eleições a cidade fervilhava. O palanque já estava armado no meio da praça principal e os preparativos para o último comício bem adiantados, quando aconteceu o imprevisto.

Magnólia decidiu comparecer e quando a mulher fincava pé era tarefa deveras complicada fazê-la desistir. Abdias Cintra tinha outros planos para depois do falatório, dos rapapés posteriores a todos comícios e não seria nenhuma Magnólia quem haveria de modificá-los.

Calculara a duração em cerca de quatro horas, certamente Lalinha o esperaria toda cheirosa, a cerveja bem gelada no freezer e a cama quentinha; por nada desse mundo deixaria de relaxar as canseiras da noite em seus acolhedores braços.

O diabo era encontrar uma boa desculpa para segurar Magnólia dentro de casa, sem correr nenhum risco de surpresas desagradáveis como daquela vez em que ela apareceu no final dos discursos e estragou os seus projetos.

Ele a conhecia muito bem, faria de conta aceitar de bom grado os seus argumentos, aquilo não é lugar para você, meu amor. Só dá homem, discurso, eleitor... Magnólia lhe mostraria os dentes com ar de conformada, dar-lhe-ia muitos beijinhos toda carinhosa e se trancaria no quarto para reforçar a impressão de que concordara. Entretanto, mais tarde trocaria de roupa e quando menos esperasse chegaria no palanque cheia de amor pra dar, forçando-o a voltar para casa em sua companhia.

Só de pensar nisso Abdias sentia o calafrio raivoso percorrer-lhe a espinha de alto a baixo, daquela vez teria de ser diferente. Armaria tudo muito direito, quem sabe até marcaria presença no comício somente por alguns minutos, arranjaria uma desculpa qualquer e correria para os carinhosos braços de Lalinha?

Mas, de quê jeito explicaria ao pessoal do partido a sua pressa, qual desculpa daria à Magnólia quando chegasse em casa somente no dia seguinte?

Ah, Lalinha... Por ela Abdias faria qualquer loucura.

Com um profundo suspiro acabou de trocar de roupa enquanto ouvia a mulher cantar desafinado no closet. Abria e fechava gavetas, esbaforida, disposta a comparecer de qualquer jeito àquele comício.

Quando menos esperava surgiu novo empecilho. Amandinha botou a cara na porta do banheiro: “Pai, aonde vai com a mamãe? Vão me deixar sozinha, é?” Perguntou, a expressão contrariada. Abdias chamou-a carinhosamente para mais perto e respondeu com o maior descaramento: “Meu benzinho, você chegou em boa hora. Convença a teimosa de sua mãe para ficar em casa! Já lhe disse que comício não é lugar para vocês e esse é o mais importante de nossa campanha. Ela detesta essas coisas, logo hoje cismou de ir também...”

A menina reagiu com um muxoxo e bradou: “Então é isso? Ninguém sai dessa casa sem mim, ouviram? Que traição é essa, dona Magnólia? Serei algum inseto para vocês me abandonarem aqui, sozinha?”

Magnólia ouvira tudo. Caiu na gargalhada e correu para a sua melhor aliada, beijou-lhe as bochechas coradas de raiva e respondeu: “Vá se trocar, meu amorzinho. O seu pai não pode chegar atrasado nesse comício. O que seria dele, sem nós duas? Vamos marcar presença, minha filha! A família toda reunida. Hoje essa gente vai ver que o Abdias é homem de muito respeito e merece ganhar de todo mundo!”.

Vencido, Abdias deixou cair os ombros em silêncio; mais uma vez Lalinha toda cheirosa e as cervejas bem geladas tiveram de ser adiadas.


Conceição Pazzola
Olinda, 16 de setembro de 2004.






 

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