sábado, 30 de junho de 2007

NOITE FRIA


Sozinha na porta de casa

com meu vestido de chita

e cheiro de terra molhada

olho a fogueira apagada

arrumada por meu pai

no raiar da madrugada

Guardo a criança no olhar

e duas tranças de fita

sinto cheiro de comida

da cozinha de mamãe

onde menino não entra

só na hora da partilha

Distantes cantigas juninas

são as vozes da bandeira

chega de muito longe

o ranger do carro de boi

traz animada a quadrilha

vem a noite esquentar

No terreiro enfeitado

voam fogos de artifício

no céu todo estrelado

já é festa de São João

canta homem e mulher

é a hora do arrasta-pé

toca xote, forró e baião

Estrelinhas e foguetão

nas brasas da fogueira

assanham menino chorão

aquecem a noite festeira

No auge da festa animada

cai a grande chuvarada

esmorece a brincadeira

emudece o sanfoneiro

o triângulo a batucada

Foge o povo do terreiro

adeus brasas apagadas

sonhos alegres e berreiro.


Conceição Pazzola


Olinda, 23 de junho de 2006.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

DIA DOS NAMORADOS...

Aquela foi a primeira vez que me dei conta da importância do Dia dos Namorados. No nordeste onde nasci sempre festejamos como a véspera do dia de Santo Antônio, santinho casamenteiro venerado por todas as moças solteiras. Isso aconteceu no ano de 1958. Cheguei na Cidade Maravilhosa com disposição para ficar o resto de minha vida, não poderia adivinhar que havia um italiano lá dos confins da bela Itália colador de pé à minha espera. Aterrissou em minha horta mais rápido do que um ciclone (que nem existe aqui no Brasil) cheio de disposição...

Surpresa maior foi descobrir que falava sério. Ciumento, determinado a ganhar-me pela persistência aparecia na modesta pensão onde me alojara cada vez mais cedo e todos os dias.

E não é que o diabo atenta e o seu truque deu certo?

Naquele remoto dia Doze de Junho, mal a noite desceu, quem tocou a campainha? O cerca Lourenço.

Lá estava ele (de novo), com o livrinho antigo debaixo do braço para me dar de presente. Saíra das santas mãozinhas de sua “Mamma”.

Sim, antes que esqueça: no Dia dos Namorados achamos uma loja no centro do Rio onde havia uma pequena Fontana de Trevi como a de Roma, imortalizada no filme La Dolce Vita. Maior barato desejar o que bem quiser e der na telha, depois jogar moedinhas.

Desconfio que o italiano fez promessa pra Santo Antônio... E não é que conseguiu?

Prestem atenção no ano: 1958. Será que chegaremos a 2008 para completar bodas de ouro?

Tristezas não pagam dívidas. O que vier é lucro!

quinta-feira, 7 de junho de 2007

DESEJO




Quero teu sorriso feliz só para mim

O mundo inteiro sumido por instantes

Quero te ouvir sussurrar baixinho assim

Amo-te. E perder de vez teu ar pedante

Quero perdição eterna de teu olhar

Ardência no peito cheio de lágrimas

Repartir a urgência simples e reter

Na minha a tua mão a tua alma

Tua presença é o mundo cor-de-rosa

A vida se liberta de qualquer enigma

Vou contigo em tua nau paradigma

Sinto teu cheiro e sou a venturosa

O sossego arrastou para bem longe

Juras amorosas caídas em chão frio

A mulher sozinha vestida como anjo

Lágrimas de sangue rolaram no vazio

Só minutos sobraram de nossas horas

Sumidas horas de muita febre de amor

A redoma insatisfeita te levou embora

Só o escuro em brasa ardeu e apagou.

Conceição Pazzola

Olinda, 07/06/2007


AS PESQUISAS


O procedimento de Cacilda para dar conta de suas múltiplas horas de aulas em diferentes colégios sem problemas de nenhuma espécie, provocava comentários nem sempre abonadores. Depois de realizar a chamada, invariavelmente batia palmas enérgicas para atrair atenção mais depressa. A turma entendia, de imediato começava a puxar as cadeiras para compor seis grupos, a exigência de praxe. Em caso de presença maciça invariavelmente sobravam três alunos. Nesse caso, Cacilda aceitava encaixá-los em grupos dispostos a acolhê-los.

Sempre em voz baixa, ela sugeria dois temas a serem trabalhados nas pesquisas durante o horário de aula. Por sorte, a biblioteca se localizava a poucos metros da sala de aula, o que facilitava o acesso a livros e revistas.

Quando todos se envolviam Cacilda podia relaxar. Sentada atrás de sua mesa retirava de volumosa pasta alguns trabalhos, exercícios e provas coletados nos diversos colégios e faculdades por onde andara o dia inteiro. A cada meia hora descansava a caneta vermelha para circular entre os grupos e verificar o andamento de cada trabalho.

Quando se aproximava, muitos a puxavam pelo braço em busca de mais esclarecimentos, ela se limitava a sorrir sem perder a fleuma e continuava a passear no meio das equipes antes de voltar a sentar atrás da mesa e retomar a correção dos papéis até a sineta tocar para o encerramento da aula.

Uma hora e quarenta minutos dificilmente permitiam a conclusão dos trabalhos, assim chegava o final de semana, de meses, de unidades, às avaliações e Cacilda cumpria toda a carga horária.

Com a sua didática, a mestra conduzia seus alunos à paixão ou repulsa aos temas por ela escolhidos. Ao mesmo tempo, sua metodologia de ensino forçosamente despertava fortes laços de cooperação e cumplicidade, os alunos concluíam os períodos com pleno conhecimento de formação de grupos, de consulta e manuseio de livros da biblioteca.

Antes de qualquer coisa aprendiam a pesquisar, a buscar nos livros o que lhes faltara durante as aulas práticas.


Conceição Pazzola

Olinda, 23 de abril de 2003 17:05

segunda-feira, 4 de junho de 2007

UMA FACE NA ESCURIDÃO





A vida ia tomando forma e cor, rompia...
Eu estava tão presa a ti, que não sabia
Onde acabava eu e começava tu.
Mas ela mesma, a vida, a borbulhar selvagem
No uivo dos animais, no viço da folhagem
- Em tudo, no teu corpo e no meu corpo nu -

Ela mesma nos separou. As cordilheiras
Afundaram no oceano. As vozes derradeiras
Dos bichos que no abismo iam todos morrer.
Enchiam-me de assombro... E conheci na treva
A maior dor. A dor da força que me leva
Para longe de ti. Meu ser pelo teu ser

Clamou... Clamou debalde. Em mim subitamente
Tudo descorou, tudo envelheceu. Ao quente
Meu coração de outrora, hoje tarde reflui
Um sangue pobre em que já não palpita nada.
Como a planta sem ar, murchei. Branca e gelada,
Não sou mais do que uma lembrança do que fui.

Embora! Testemunhei eu só, aquela
Que trouxe a vida em si mais luminosa e bela
Do que nunca a sonhaste, a glória deste amor
Terás em mim, aquela que foi tua, ora uma estranha,
A única face que te observa e te acompanha
Da funda escuridão... Cada dia maior...

Poema desentranhado de uma página em prosa da escritora Dinah Silveira de Queiroz.

Manoel Bandeira - Estrela da Vida Inteira p. 216