quinta-feira, 25 de dezembro de 2008
UMA HISTÓRIA DE NATAL
Quando os nossos filhos eram crianças, na véspera de Natal nós os levávamos para ver a decoração do Centro do Recife. Todos os anos, a mesma coisa.
Descíamos do ônibus Olinda-Casa Caiada ao anoitecer, preocupados com o trânsito e com a obrigação de atravessar corretamente nos semáforos para chegar às pontes.
Caminhar pelas ruas do Recife é uma aventura, especialmente em companhia de quatro crianças, ansiosas por encontrar diversão.
No rio Capibaribe se refletiam as luzes coloridas e, dentro da água, a árvore de natal piscava em dose dupla, refletida no rio. Felizes por estar ali, as crianças se debruçavam no beiral, apreciavam o espetáculo, soltavam as suas bexigas de borracha. Enquanto elas voavam ao sabor do vento, torciam para ver qual chegaria mais alto no céu.
A véspera de Natal sempre acabava no Cordeiro, onde moravam os meus pais e irmãs, que nos esperavam para a ceia.
Percorríamos as principais ruas do Recife até chegar ao terminal que nos levaria a esse bairro.
No dia seguinte, a família se reunia para o almoço de Natal. As crianças tinham a oportunidade de brincar com os primos e todos nós sentíamos alegria em rever pessoas que raramente encontrávamos durante o restante do ano.
São lembranças que fazem parte de um tempo muito feliz.
Conceição Pazzola
quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
O VISITANTE DE DEZEMBRO
Nas ruas apinhadas, gente indo e vindo, todo mundo comprando às pressas, ninguém dispõe de tempo para apreciar o nascer do dia, o raio de sol que parece brincar nas vidraças da janela, nas poças d’água das calçadas. Neste clima materialista, como seria recebido o aniversariante máximo de dezembro?
Se Jesus por milagre aparecesse no meio da rua, os carros freiariam a tempo? E as pessoas acreditariam, mesmo, que era “Ele”? Nos balcões apinhados das lojas, os olhares de cobiça se desviariam para o ilustre visitante?
O que Ele acharia do vai-e-vem enlouquecido de compras, das vitrines cheias de papai Noel, árvores de Natal cobertas de falsa neve, do trânsito engarrafado das ruas, de tantas pessoas que esqueceram o significado de “Amai-vos uns aos outros” ?
Talvez seja preferível que não venha nos visitar, pelo menos, livra-se de sofrer decepção. Nesta insana época pré-natalina, de consumismo desenfreado, talvez nem Jesus compreendesse o que toda essa gente diz comemorar em 25 de dezembro.
A Sua humildade magnânima, a crença na humanidade que O fizeram pronunciar: "Pai, perdoai-os porque eles não sabem o que fazem!” Teria ainda essa crença, falaria a mesma coisa a esta humanidade de robôs?
Meu Deus, é melhor Jesus nem tomar conhecimento (como se isso fosse possível) do que nós chamamos hoje de Natal. Ele, que é tão bondoso, não merece tamanho desencanto.
Ainda é tempo dos homens aprenderem a olhar o seu semelhante, não apenas durante o mês natalino. Quem sabe, assim todos pudessem ser bem mais felizes.
Conceição Pazzola
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
LÁGRIMAS
Quando o coração chora
Sem motivo aparente
Lágrimas secam na face
Uma a uma lentamente
Lágrimas de um coração
Diante do ser desalmado
Quando chega sem aviso
Enlouquece em disparada
Furtivas lágrimas repartidas
No clímax duplo do amor
Prova de total plenitude
Antes de voltar a dormir
Lágrimas fustigam a pele
Aquecem o frio na dor
De uma perda inesperada
Só desconsolo e desamor.
Conceição Pazzola
domingo, 9 de novembro de 2008
VISTA A MINHA PELE
Dia da Consciência Negra
Dia da consciência branca
Dia da consciência pesada
Silas Corrêa Leite
Vista a minha pele
Você conseguiria?
Seja negro só por um dia
Seja preto por mim
Somando todas as minhas cores assim
Vista a minha pele
Sinta a minha cor
Seja você quem for
Capture a minha dor
Lá dentro de mim
E procure me compreender melhor assim
Vista a minha pele
Eu sou igual a você
Ser humano porque
Corpo, Mente, Coração
Então, por que racismo e discriminação?
Vista a minha pele
Sou vermelho por dentro
E negro sempre cem por cento
Afrodescendente
Além de para sempre
Inteiramente ser humano e sobretudo gente
Vista a minha pele
Vista-se de mim
E procure me entender seu igual assim
Seu irmão da maravilhosa e cósmica raça
E então veja tudo o que dentro de mim se passa
Assim você confere
Assim você vai se sentir
Dentro da minha pele
Como eu quero ser árvore e florir
Como eu quero ser janela e me abrir
Como eu quero ser estrada e prosseguir
Que eu quero ser estrela e sorrir
Sem ninguém para me ferir
E você vai captar então
A pureza do essencial
O que eu quero é total libertação
E todos iguais na coloração
Numa democracia racial
Vista a minha pele
Seja um pouco eu mesmo por aí
Dentro de você - para você sentir
Sou preto brasileirinho
Sou negrão e sou negrinho
Sou negro do seu mesmo valor
E tenho a Mama-África no meu interior
Depois de me vestir e de se sair de si
Deixando de ser eu negão aí
Venha me estender a sua mão
E de coração para coração
Abrace-me como um seu completo irmão
Pois a nossa pele espiritual será uma só então
Numa sagrada celebração.
-0-
Silas Corrêa Leite, de Itararé-SP, Poeta, Educador, Coordenador de Pesquisas da FAPESP-USP-Culturas Juvenis – Autor de “Porta-Lapsos”, Poemas, e “Campo de Trigo Com Corvos” Contos, Editora Design
EMEF José Alcântara Machado Filho, Real Parque, AR-BT, São Paulo-SP
Endereço eletrônico: poesilas@terra.com.br
Site: www.itarare.com.br/silas.htm
Texto da Série: Afrobrasilis – “Amalgamados - Dos Filhos Deste Solo”
(Silas Corrêa Leite, inédito)
quinta-feira, 30 de outubro de 2008
O JARDIM
Durante o curto espaço de tempo de namoro ele não perdia ocasião de falar sobre o jardim onde deixara as melhores lembranças da terra em que nascera. O jardim da avó para onde fugia quando menino. Ela o ensinou a plantar e colher, a abrir massa, aprendeu também a fazer crochê e bordado e disso não se envergonhava. Com as sobras de massa modelava pombos, para provar que sabia retirava o miolo do pão, em poucos minutos os dedos ágeis mostravam que não haviam esquecido. O jardim para a liberdade absoluta, eu me perguntava como podia um jardim ser tão especial até compreender que falava do que chamamos o sítio, fazendinha ou roça.
Um dia levou-me a conhecer onde existira o inesquecível jardim de sua nonna. Ficamos abraçados de olhar melancólico sobre a região montanhosa, coberta de verde sem vestígios da casa ou do jardim.
Nos passeios pelo centro do Rio sempre dava um jeito de ficarmos sozinhos. Aproveitava para lembrar a infância feliz e a juventude atribulada na caserna. A guerra deixara marcas difíceis de esquecer.
Uma noite de verão na praça Paris, mergulhado em recordações, o rosto sério e o olhar distante divagava sobre o passado. Escutava-o refugiada em minha timidez quando ergueu o olhar, interrompeu o que dizia e começou a cantar, esquecido do lugar público e movimentado:
“Aveva um bávaro color zaferanno e na matina color ciclamino”...
Sorri sem compreender, ele tocou na gola branca sobre meu vestido vermelho e perguntou: Por que usa isso? Vai me esquecer para ser freira?
Imitei-o e o passeio prosseguiu assim, dois lunáticos, ele cantava primeiro, eu repetia sem entender nada até os nossos acompanhantes surgirem numa curva da praça repleta de casais.
Conceição Pazzola 30/10/2008
quarta-feira, 29 de outubro de 2008
CIÚME (2)
Nem sempre é percebido de imediato, mas se manifesta de várias formas. A diferença de idade nunca me pareceu problema, no entanto para ele a minha juventude era um fator a considerar. Ainda recém-casada, habituada a freqüentar a missa dos domingos achei que podia fazê-lo, devidamente informada fui à igreja mais próxima de onde morávamos. Santa Tereza é um dos mais bonitos recantos do Rio de Janeiro, um paraíso à parte, parecia-me estar num conto de fadas ao ver lá em baixo a cidade, a baía da Guanabara e bem perto, o Corcovado.
Quando a missa acabou, misturada aos fiéis desci a escadaria, pensativa, não o vi de imediato. Antes de sair de casa o deixara a dormir tranqüilamente, fizera o possível para não provocar nenhum barulho. Sorriu antes de rodear-me os ombros num gesto protetor e começamos a andar pela rua estreita sempre enladeirada, como todas de Santa Tereza. A brisa gostosa varria-me os cabelos, embora estivéssemos em pleno verão. Depois de algum tempo em silêncio perguntou:
- Como foi sua missa?
Achei engraçado, o que poderia dizer? Afirmava que era católico, mas não o vira demonstrar interesse em fazer-me companhia.
- Normal, como todas.
Olhou-me com atenção e começou a discorrer sobre a natureza dos padres, apesar de tudo são homens iguais a ele, preferia que deixasse de ir sozinha.
- E todas as outras mulheres, será que o padre tem tanta maldade assim?
- Das outras eu não sei – respondeu depressa – Prefiro que não faça mais isso, me chame.
- Mas você não gosta de ficar lá dentro por muito tempo.
Ele mais que depressa mudou de assunto:
- Vamos tomar um sorvete?
A missa foi o preâmbulo, depois vieram os médicos, os professores, os colegas de faculdade, todos que cruzavam o meu caminho sem que estivesse presente. . Quando não podia acompanhar-me devia contar como tudo acontecera. Estava sempre a esperar com olhar ansioso, do lado de fora ou em casa. Na verdade eu me sentia lisonjeada com tanto cuidado, gostava de vê-lo aparecer sem avisar, tentava não brigar pela falta de confiança, muitas vezes isso foi necessário.
Com o passar dos anos compreendi que não poderia fazer nada além de demonstrar quanto o respeitava. Cheguei à conclusão que seria inútil tentar modificar o seu jeito de pensar e agir.
Conceição Pazzola
29/10/2008
sexta-feira, 24 de outubro de 2008
SE
Se o milagre da calidez de novo sol
Afugentar tua imagem de minh’alma
Com ela se desfazem ilusões de amor
Chama que alimentou nossas vidas
Se a suave fragrância, o perfume
Chegar mansamente, irresistível
Acordará em ti os teus ciúmes
A ferrugem de amor impossível
Se guardares um pouco de ontem
No conta-gotas de tédio e agonia
São porções esparsas de sonhos
Soltos no desvão de tua alegoria
Sou a tua vida teimosa sem passado
Apenas lampejo de um amor perdido
Sou pequeno ponto no mapa mofado
Retalho de tua história sem sentido
Conceição Pazzola
sexta-feira, 17 de outubro de 2008
O MITO
A tormenta diária cessou
Quando o homem afivelou
As suas malas e partiu
Sem um olhar para trás
Sem uma palavra de adeus
Não sentiu nem chorou.
O cachorro do homem correu
Até o alto dos rochedos
E na distância se perdeu
Na preamar desde cedo
Calaram todos os gritos
De mulher e de menino
Perdido estava o mito.
Sem pressa sem desatino
Deu o braço à namorada
E se foi sem dizer nada.
Conceição Pazzola
domingo, 12 de outubro de 2008
CIÚME
Ao aparecer diante dele de vestido novo ou de ruge e batom Giovanni ria, dizia gracejos, a reação incomodava, no íntimo sentia-me lisonjeada, aquele homem me amava. Desculpava-o pelo excesso de zelo ou de ciúme, porém teria de aceitar-me como sempre fora, vaidosa.
Toda noiva gosta de se fazer bonita na véspera de seu casamento.
Saí do salão de beleza quase ao anoitecer, ao olhar o relógio vi quanto estava atrasada. Combináramos levar mamãe conosco à Santa Tereza para os últimos retoques em nosso minúsculo apartamento de quarto, terraço, sala e cozinha onde receberíamos os convidados depois das cerimônias. Está no plural porque naquele tempo o casamento civil acontecia no cartório, separado do religioso.
Ao chegar ao cruzamento da Rua Senador Pompeu (vizinhanças da Central do Brasil) avistei-o, vinha em direção contrária. Por um triz não passou rente a mim.
Sorri e estaquei à sua frente. Hesitante, mirou-me com espanto, sem palavras. Possuía a rara qualidade de ser espontâneo quase transparente:
- O que aconteceu com seu cabelo?
Em resposta sacudi a cabeça feliz da vida para balançar os cachos, grande sonho de toda mulher que nasce de cabelos muito lisos e respondi:
- E aí, gostou?
Com a sua habitual franqueza o meu noivo desanuviou a carranca, rodeou-me, beijou-me e comentou:
- Ainda bem que vi antes, senão ia achar que trocaram você.
Conceição Pazzola 12/10/2008
terça-feira, 7 de outubro de 2008
A ESCURIDÃO DA NOITE
A imensidão sombria
De ruas desabitadas
Envolve todas as coisas
Antes que a mão misteriosa
Afrouxe os dedos e derrame
No firmamento grande véu
De inúmeras estrelas brilhantes
Somente ao nascer da lua
Soberana sobre a montanha
O mar vira cortina prateada
Acalanto de casais enamorados
Crentes na eternidade e magia
Do tempo sem mágoa nem dor
Quando raiar um novo dia
Nuvens escuras enciumadas
Escondem estrelas e o luar
Durante a escuridão da noite
Os amores explodem sem parar.
Conceição Pazzola
terça-feira, 30 de setembro de 2008
O CIRCO
O globo da morte, a motocicleta voadora, os trapezistas, a dançarina sobre o cavalo, os palhaços, os pernas de pau, tudo ofuscado pela janela por onde se podia ver o cadáver de pescoço perfurado por peixeira afiada. A trupe circense sem máscaras, sem fantasias soluçava a perda da atriz principal, mulher do dono do circo. Depois da longa noite de velório nunca mais se ouviu falar deles.
“Hoje tem espetáculo? Tem sim senhor! Às seis horas da noite? Tem sim senhor!
E o palhaço o que é, é ladrão de mulher?”
A tarde que prometia ser de festa terminou mais cedo quando o menino foi devorado pelo leão diante do pai. Os animais sumiram dos picadeiros enquanto durou a comoção popular.
Não dá para esquecer o circo de Niterói que pegou fogo num domingo festivo.
Morte e circo não combinam.
Prefiro transportar-me ao momento feliz em que fui com meu pai, há tanto tempo atrás, pela primeira vez desvendar o mistério, o colorido, a alegria esfuziante da lona armada na Rua da Mangueira.
Somente um homem e uma menina de vestido domingueiro a devorar com olhos abismados o espetáculo inesquecível tantas vezes sonhado.
Conceição Pazzola
30/9/2008
quinta-feira, 25 de setembro de 2008
AMIGO DE PENAS
Poderia ter sido uma manhã como todas as outras não fosse a visita inesperada.
Primeiro cantou no alto das árvores para chamar atenção, como costumava fazer quando Giovanni vivia.
Pé ante pé para não assustá-lo aproximei-me da janela, o nosso visitante de penas negras e papo amarelo pousara no jambeiro que o meu marido plantou defronte a casa.
Balançou o bico de um lado a outro, gorjeou baixinho antes de voar para a grade e nela se acomodar, onde cantou novamente.
Senti os olhos se encherem de lágrimas, o pássaro do qual nem o nome sei esperava pelo assobio que não veio. Na cadeira de seu amigo não havia ninguém.
Contive a emoção ao vê-lo entrar no terraço e pousar no encosto de uma das cadeiras. Foi só um instante, abriu asas e sumiu entre as folhas do quintal.
Os pássaros podem ser amigos fiéis.
Conceição Pazzola
25/9/2008
domingo, 21 de setembro de 2008
A Entrada é Franca
Quantas crianças desvalidas
Moram anônimas nas esquinas
Em lares serenos dos bem-de-vida
Dormem meninos de melhor sina.
No meio de tiroteio assustador
É a polícia atrás de assaltantes
Passageiros da hora de horror
O fugitivo sentou ao volante
Tudo acontece em segundos
No carro crianças gritam Pai!
Mil balas passam de raspão
Socorra a menina meu rapaz
Escurece a noite sobre a calçada
Choraram todos policia e ladrão
Sangra a pequena a vida é nada
Os anjos não precisam de alfaiate
Vão para o céu com asas brancas
Na vida vadia não corra ou mate
Vá ao paraíso, a entrada é franca.
Conceição Pazzola
Olinda 29/8/2008.
sábado, 13 de setembro de 2008
PESADELO
À luz do dia chegou diante da casa.
De novo viu a praça, a rua estreita e pouco movimentada.
Estacou na calçada fronteira, ao seu lado Alice esperava. A maquiagem barata dissimulava o cansaço de mil noites mal dormidas.
Não havia paredes descascadas, grades pesadas e negras janelas iguais àquelas. Paralisada diante da casa soturna tremeu da cabeça aos pés e as lembranças da noite de pesadelo a possuíram. Os sussurros obscenos, os seus próprios gritos. Apertou as têmporas latejantes inutilmente.
Como se adivinhasse Alice pegou o seu braço, apertou-o com força, obrigou-a a voltar à terra:
- Fiz o que querias. Mas não vejo razão, acho loucura. É melhor irmos embora. Quem vai acreditar?
Do outro lado, parado diante da casa o vigia em seu uniforme desbotado continuava a fuzilar as duas mulheres com olhar rancoroso e cheio de sono.
Corina sentiu frio penetrante nas entranhas, a coragem que a movera até ali desapareceu. Desejou estar em seu quarto, a porta trancada para ninguém ver as lágrimas jorrarem incontroláveis, que agora ameaçavam saltar ali mesmo naquela rua sombria em plena luz do sol de meio-dia.
Viu as gotas de suor ameaçarem escorrer o pó do rosto de Alice.
- O que vai adiantar? Estou com fome, vamos embora – a voz saiu da boca mascarada, passou raspando sem atingi-la.
Continuou hipnotizada, pregada ao solo, a cena da noite mais viva do que nunca a destruí-la por dentro, o olhar preso na negra janela, o terror voltando aos borbotões.
A vista escureceu, de novo era noite. Gritava e ninguém respondia.
Debatia-se, de novo as mãos grosseiras e ela tão nua. Mergulhou no túnel sem volta e deslizou em queda vertiginosa. As pernas dobraram lentamente.
As pancadas na janela a fizeram abrir-se de par em par. Emoldurou o rosto pálido de uma mulher, a aparição tangeu o pesadelo.
Voltou à realidade, o sol brilhava e Alice com seu rosto borrado impaciente.
Ah, precisava fugir depressa, da casa de paredes descascadas, da praça deserta, do monstro de voz aterrorizante.
- Vamos embora, Alice.
Assustou-se com a própria voz, apressou os passos e a amiga teve dificuldade para acompanhá-la.
Conceição Pazzola
Olinda, 7/9/2008
segunda-feira, 8 de setembro de 2008
SEM VOCÊ
Foto: Cezanne, Árvores no Jaz de Bouffan.
É sempre assim
Quando a tarde cai
Ele vem devagarinho
Como quem não quer nada
Vem sem ser chamado
Leva o calor esconde o sol
Protegido atrás das nuvens
É hora e vez do intruso frio
No corpo, na alma solitária
Vazios estão meus braços
Nesse grande mundo frio
Gelados ossos arrepiados pêlos
De quem ainda não percebeu
O vazio e o desmantelo
Chega mansinho, vem devagar
Como quem não quer nada
Devolve ondas calorosas
Quando a noite se avizinha
Aparece envolto
Deixa-me
Esquecida de fraqueza, dou
Olhares suplicantes à lua
Entre nuvens sombrias
É só miragem, é mentira
Doce embora efêmera
Antes que sumas
Aninhada em teu colo
No meio da noite escura
Nem a lua me responde
Onde estás agora
É sempre assim
Quando a noite vem
E a ventania murmura
Despeço-me
Dos belos dias de verão
Até quando devo agüentar
O longo inverno sem te ver
Sem meias nos pés a esperar
Ouvidos atentos aos barulhos
Do vento que sopra e traz
Embalos dementes do amanhecer
Sozinha e sem você.
Conceição Pazzola
12/7/2008
quarta-feira, 3 de setembro de 2008
CANSEI DE TI
Olha aí mundo cansei de ti
Mais sozinho do que pixote
Aparento e não sou menino
Vago canhestro na má sorte
Sou solidão em tarde quente
Folha seca de vida matreira
Fervura e revolta na mente
Tomo pancada levo rasteira
Olha aí mundo cansei de ti
Filho sem pai inconsciente
Pensando bem sou zumbi
Tenho nada na vida vazada
Lambo chão de cão vira lata
Mais um cheira cola ignorado
Tampo e destampo matraca
Passo pelo tempo passo ausente
Bata no menino não é um homem
Tranco no peito o sangue quente
Morrerei bandido sou lobisomem.
Conceição Pazzola
12/8/2007
terça-feira, 26 de agosto de 2008
DEPOIS DA CHUVA
O meu texto Depois da Chuva foi escrito há mais de vinte anos atrás. No entanto as coincidências existem. Descobri por acaso na Internet, que existe um filme japonês com o mesmo título. Vejam que interessante:
Tributo a Akira Kurosawa (SP)
A partir de um roteiro de Akira Kurosawa, o diretor Takashi Koizumi realizou uma homenagem ao mestre japonês, contando uma história que ele não conseguiu filmar antes de sua morte, no ano passado, aos 88 anos.
Quando um rio transborda por causa de uma enchente, um grupo de viajantes é obrigado a ficar numa pequena hospedagem. Misawa, um ronin pobre, e sua mulher Tayo estão entre eles. A chuva continua, aumentando a tensão entre os hóspedes. Assim, Ihei decide organizar uma festa, para elevar o ânimo do grupo. Sem dinheiro para levar seu projeto adiante, ele vai até o castelo vizinho e faz uma aposta com um mestre de esgrima. Embora desastrado nas relações humanas, ele é formidável neste duelo a dinheiro, mesmo que não sendo digno da conduta de um samurai. Shigeaki, o lorde do local, impressionado pelas habilidades de Ihei, o convida para ser o mestre de esgrima em seu feudo. Ihei fica encantado com a oferta, despertando a inveja dos outros lutadores, que acham que este posto deveria ser de um deles.
"Nas anotações que Kurosawa fez em seu roteiro de Depois da Chuva (Ame Agaru, Japão, 1999), ele escreveu: `Deve ser uma história que, depois de ser vista, faça você se sentir satisfeito'. Já faz um ano que ele morreu. Com minha pequena equipe e elenco, eu filmei o roteiro de Kurosawa da maneira como ele queria e com o sentimento de gratidão por sua obra".
DEPOIS DA CHUVA
O dia amanheceu claro e ensolarado, o vento corre por toda parte traz de volta a esperança e o otimismo. Renovada, a atmosfera alegra e beatifica o espírito. Respiro longamente, as forças renovadas para a luta do dia-a-dia sinto no rosto a tepidez benfazeja da brisa. Agradecida, aprecio as folhas lavadas das árvores, em sua maioria pertencentes ao tradicional cemitério de Santo Amaro onde o melhor adubo é o próprio homem.
Do alto deste prédio continuo a observar a Natureza resplandescente, acode-me o pensamento de como Deus soube fazer as coisas. Ele preparou o Universo em primeiro lugar, deu flores e frutos às árvores, calor e frio, rios e mar à Terra. Chuva, sol, lua e estrelas ao Céu, povoou o mundo com animais de todos os tipos. Por último fez o Homem à Sua imagem e semelhança. Depois Deus descansou.
Aqui está a Natureza renovada depois de uma noite inteira de chuva diante de meus olhos, como um brinde de Sua presença. É pena que não aconteça a mesma coisa com o ser humano. Depois de uma vida atribulada entre lutas e atropelos pela sobrevivência nem sempre o homem dá a imagem que tenho agora da Natureza.
Surpreende-me mais uma vez a grandeza e a sabedoria divina, guardando o surgimento do ser humano para o penúltimo dia de Criação. Com o seu espírito imperfeito, tivesse chegado primeiro o homem a destruiria, a Natureza nem teria chance de florescer e frutificar.
Conceição Pazzola
domingo, 24 de agosto de 2008
SEM APLAUSOS
Desertos ficaram os camarins
Sem máscaras sem fantasias
De colorido cetim esquecidas
Soltas nos cabides pelas coxias
Por inúteis as luzes são apagadas
Sumidos nos instantes de espelhos
Mil cenas com trejeitos ensaiados
Ecoam nos corredores os conselhos
Paira por toda parte o silêncio
Contagiante é o total negrume
Atrás de imensos reposteiros
Perduram vestígios perfumados
Presentes e sonhos vaga-lumes
Guardado no grande palco vazio
Por trás das cortinas fechadas
Resiste novo alento e desafio
Volta à cena o ator principal
Do espetáculo há retomada
Ainda distante do ato final
Reaberta da vida a cortina
Mais uma vez se aproxima
O clímax de cenas e de sina
De novo é espetáculo humano
No mesmo teatro a compasso
Tudo em seu lugar, sobe o pano
Aplaudam os artistas os palhaços.
Conceição Pazzola
09/10/1998.
Foto: Atelier Roxane de Máscaras - Carnaval em Veneza.