quinta-feira, 17 de maio de 2007

O SOBRADO


O barulho ensurdecedor das estacas no lado direito de minha casa continua a martelar-me os ouvidos, é tão forte que afugenta o sossego e atrapalha o raciocínio.

Nesse terreno será construído um edifício de doze andares. Em breve ninguém se lembrará que ali existiu a casa de dois andares a que chamávamos de sobrado, onde moraram os nossos melhores amigos, o médico sanitarista Dr. Milton Sobral, a esposa Auxiliadora, dois filhos: Greice Maria que conhecíamos por Mana e seu irmão aprendiz de pianista, inteligente e dedicado, tornou-se um militar graduado como não poderia deixar de ser.

É preciso conter a tristeza que nos invade ao ver o terreno agora tão castigado para que nele seja erguido mais um edifício moderno.

Nele as nossas crianças brincavam, tomavam banho na piscina que foi motivo de muitos sustos e por isso ganhou um gradeado, precaução contra acidentes imprevistos. Tento desligar-me da barulheira infernal para concentrar-me em boas lembranças.

Nas noites de Ano Novo, depois de reunir-se em torno da mesa festiva a família do sobrado convidava os vizinhos para acompanhá-la no primeiro banho do ano na piscina, regado ao champanhe e a petiscos variados. Tornou-se hábito, quando não aparecíamos o Dr. Milton vinha pessoalmente saber o que havia acontecido, até convencer-nos a acompanhá-lo. Auxiliadora nos esperava dentro da piscina e nos recebia de braços abertos.

Fecho os olhos e vejo as crianças a correr e a gritar felizes pelo quintal, quase gêmeas eram as nossas casas, separadas por um muro de pouca altura.

Enquanto as estacas perfuram sem dó nem piedade procuro explicações para o inexplicável desenlace de uma família como aquela. A última notícia a respeito de Mana, a menina que sonhava tornar todo mundo feliz, depois de um casamento desfeito havia se mudado para a Alemanha onde esperava encontrar a chave do sucesso e do amor perfeito.

Por muitos anos, triste e impotente o sobrado resistiu às muitas reformas e agressões de inquilinos. Todos o ocuparam durante pouco tempo, habituamo-nos a ver os caminhões de mudança partirem e janelas e portas novamente trancadas.

Muitas reformas aconteceram no sobrado. Quando o último inquilino o abandonou, os carroceiros vieram em horas discretas para retirar telhas, lâmpadas, e tudo quanto fosse possível carregar.

Pouco a pouco restou só a carcaça de um sobrado abandonado, entregue à própria sorte. Ali se alojaram em recantos convidativos grandes casas de cupins, gulosamente infiltraram-se pelas raízes de árvores no quintal onde existia piscina, há muitos anos soterrada quando ali funcionou uma escola.

Afinal, o que aconteceu com a família de Dr. Milton Sobral?

Apesar de sua ótima localização e aparência sólida o sobrado da piscina vivia desocupado. Quando o maestro Nelson Ferreira o ocupou com a numerosa família pensamos por um instante que afinal ganháramos boa vizinhança, entretanto, ele o ocupou somente por duas semanas, depois, mais uma vez o sobrado foi posto à venda.

Comprado por um empresário de Limoeiro, tornou-se o lazer da família nos fins de semana, até ser habitado por uma senhora, a sogra do empresário. Durante alguns anos tornou-se a guardiã do sobrado enquanto não foi novamente vendido.

Um belo dia, quando a placa de “Vende-se” foi retirada, não demorou veio a mudança e o casal acompanhado por dois filhos, dois cachorros e um cunhado, seguidos pela empregada, senhora idosa, disposta e muito simpática.

Afinal a vida pulsou de verdade dentro daquelas paredes, pois a família viera com disposição para ficar. O sossego matutino foi substituído pelo som de um piano tocado por um menino e pelos gritos de sua geniosa irmã. O cunhado comportava-se discretamente, por ser especial às vezes agia e falava como as crianças.

Foram anos muito felizes.

Naquele verão, eles partiram para um fim de semana na longínqua praia de Carne de Vaca onde pretendiam inaugurar a casa nova. Parecia ser um programa perfeito. No domingo, o nosso amigo médico sanitarista resolveu sair em companhia do sobrinho para pescar, um menino inteligente e bonito a quem muito estimava. Ao ver a criança escorregar e cair dentro d’água, sem pensar duas vezes o Dr. Milton mergulhou para tentar salvá-lo e ambos se afogaram.

Antes do anoitecer chegou a triste notícia. Sem querer acreditar corremos ao cemitério, ali encontramos a desolada viúva à espera dos corpos que em breve teriam de ser velados.

A perda repentina tornou insuportável a vida entre as paredes do sobrado. Ficaram as lembranças felizes e a família partiu para nunca mais voltar.

Dentro de alguns anos, quem passar por essa rua verá o belo edifício de doze andares no mesmo lugar em que existiu o velho sobrado.

Conceição Pazzola. Olinda, 06/5/2007.

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