sexta-feira, 18 de maio de 2007

O RECOMEÇO





Quando o ônibus parou diante do portão gradeado, enquanto a maioria dos passageiros que haviam desembarcado atravessava a avenida àquela hora quase deserta, cautelosamente Marieta olhou para os dois lados antes de fazer o mesmo. A voz de sua mãe havia lhe segredado ao ouvido para fazê-lo e como sempre ela obedeceu.

A visão de uma padaria na esquina da rua lembrou-lhe que saíra de casa sem tomar café, esquecimento provocado pela ansiedade antes de fazer os testes para entrar na faculdade.

Vinte anos depois de abandonar as salas de aula ali estava, disposta a enfrentar o primeiro dia dos Exames Vestibulares.

Olhou para o relógio mais uma vez, os ponteiros quase não haviam saído do lugar, respirou com força e caminhou pelo pátio onde ruidoso grupo de madrugadores discutia as experiências de outros anos.

Nem a notaram, circunvagou o olhar em busca de um rosto conhecido, em vão. Em pouco tempo mais gente se juntou ao grupo, sentiu-se mais à vontade e aproximou-se, esqueceu a timidez e começou a trocar idéias sobre as provas daquele dia. Logo um segurança veio fechar o portão, surpreendeu-se a gritar também pelos retardatários que suplicavam para entrar. Uma força misteriosa brotara não sabia de onde, tornara-se corajosa de uma hora para outra.

Sentada diante do fiscal que explicava o regulamento, Marieta parou de tremer. Durante a leitura das questões, apesar de haver freqüentado a escola pública e de tantos anos decorridos, percebeu que poderia respondê-las.

Desde o dia da inscrição havia se debruçado sobre os cadernos e apostilas reunidas aqui e acolá procurando evitar os olhares espantados de seus filhos pequenos, determinada a chegar onde pretendia. Os primeiros fios de cabelos brancos mostravam a passagem dos anos, antes que fosse tarde demais decidiu ignorar a cara fechada como o marido acolhera a novidade. Afinal estava ali, disputava sua chance de recomeçar, tantos anos depois de ostracismo voluntário.

No terceiro dia perdera por completo a inibição com os futuros colegas, eles a tratavam pelo primeiro nome. Quando as provas terminaram, entre feliz e saudosa voltou para casa, o coração lotado de esperanças. Sentia-se renovada por dentro, bem disposta até para os afazeres domésticos, que lhe pareciam menos estressantes.

A filha veio de mansinho escondendo o jornal atrás das costas. Obrigou-a a sentar e espalmou-o diante de seu rosto. Na mesma hora os olhos embaçaram, não enxergou mais nada. Abraçadas, as duas pularam e gritaram, irmanadas na mesma alegria. Não obtivera uma grande nota, como hipnotizada, sem querer acreditar conferiu mais uma vez o seu nome na lista de aprovados. Conseguira.

E agora, teria forças para levar adiante a sua loucura?

No primeiro dia de aula sentiu remorsos o dia inteiro, esperou que os filhos terminassem o jantar, ao chegar na sala de aula todos já haviam entrado, inclusive o professor.

Depois de um instante de hesitação tentou passar despercebida, abaixou-se feito criança sussurrando desculpas aqui e ali antes de encontrar uma cadeira vaga na última fileira. A sua chegada interrompeu o fio de pensamento do simpático professor Jomard Muniz de Britto. Ele pigarreou várias vezes até a classe inteira sorrir, deixando-a vermelha de vergonha, antes de retomar a aula.

Com o rosto em fogo, a mão trêmula achou a caneta no fundo da bolsa para estrear o caderno novo. Lembrou-se de quantos obstáculos tivera de livrar-se para conseguir o direito de estar ali. Sentia haver chegado à porta do paraíso e não era nenhum sonho.

Quando o primeiro dia de aula chegou ao fim, descobriu o marido parado na porta da sala a esperá-la, o rosto ansioso para saber os detalhes de tudo o que acontecera.


Conceição Pazzola

Olinda, 23 de abril de 2003

Um comentário:

Aline disse...

Ceça, que emoção! Estou com os olhos marejados!
Escreves de um jeito... impossível não se identificar... senti-me Marieta!

Amei, como sempre!

Beijos!