domingo, 20 de maio de 2007

AI, QUEM ME DERA






Ai, quem me dera terminasse a espera
Retornasse o canto simples e sem fim
E ouvindo o canto se chorasse tanto
Que do mundo o pranto se estancasse enfim

Ai, quem me dera ver morrer a fera
Ver nascer o anjo, ver brotar a flor
Ai, quem me dera uma manhã feliz
Ai, quem me dera uma estação de amor

Ah, se as pessoas se tornassem boas
E cantassem loas e tivessem paz
E pelas ruas se abraçassem nuas
E duas a duas fossem casais

Ai, quem me dera ao som de madrigais
Ver todo mundo para sempre afim
E a liberdade nunca ser demais
E não haver mais solidão ruim

Ai, quem me dera ouvir o nunca-mais
Dizer que a vida vai ser sempre assim
E, finda a espera, ouvir na primavera
Alguém chamar por mim...

Vinícius de Moraes
Compositor: Vinícius de Moraes.




sexta-feira, 18 de maio de 2007

O RECOMEÇO





Quando o ônibus parou diante do portão gradeado, enquanto a maioria dos passageiros que haviam desembarcado atravessava a avenida àquela hora quase deserta, cautelosamente Marieta olhou para os dois lados antes de fazer o mesmo. A voz de sua mãe havia lhe segredado ao ouvido para fazê-lo e como sempre ela obedeceu.

A visão de uma padaria na esquina da rua lembrou-lhe que saíra de casa sem tomar café, esquecimento provocado pela ansiedade antes de fazer os testes para entrar na faculdade.

Vinte anos depois de abandonar as salas de aula ali estava, disposta a enfrentar o primeiro dia dos Exames Vestibulares.

Olhou para o relógio mais uma vez, os ponteiros quase não haviam saído do lugar, respirou com força e caminhou pelo pátio onde ruidoso grupo de madrugadores discutia as experiências de outros anos.

Nem a notaram, circunvagou o olhar em busca de um rosto conhecido, em vão. Em pouco tempo mais gente se juntou ao grupo, sentiu-se mais à vontade e aproximou-se, esqueceu a timidez e começou a trocar idéias sobre as provas daquele dia. Logo um segurança veio fechar o portão, surpreendeu-se a gritar também pelos retardatários que suplicavam para entrar. Uma força misteriosa brotara não sabia de onde, tornara-se corajosa de uma hora para outra.

Sentada diante do fiscal que explicava o regulamento, Marieta parou de tremer. Durante a leitura das questões, apesar de haver freqüentado a escola pública e de tantos anos decorridos, percebeu que poderia respondê-las.

Desde o dia da inscrição havia se debruçado sobre os cadernos e apostilas reunidas aqui e acolá procurando evitar os olhares espantados de seus filhos pequenos, determinada a chegar onde pretendia. Os primeiros fios de cabelos brancos mostravam a passagem dos anos, antes que fosse tarde demais decidiu ignorar a cara fechada como o marido acolhera a novidade. Afinal estava ali, disputava sua chance de recomeçar, tantos anos depois de ostracismo voluntário.

No terceiro dia perdera por completo a inibição com os futuros colegas, eles a tratavam pelo primeiro nome. Quando as provas terminaram, entre feliz e saudosa voltou para casa, o coração lotado de esperanças. Sentia-se renovada por dentro, bem disposta até para os afazeres domésticos, que lhe pareciam menos estressantes.

A filha veio de mansinho escondendo o jornal atrás das costas. Obrigou-a a sentar e espalmou-o diante de seu rosto. Na mesma hora os olhos embaçaram, não enxergou mais nada. Abraçadas, as duas pularam e gritaram, irmanadas na mesma alegria. Não obtivera uma grande nota, como hipnotizada, sem querer acreditar conferiu mais uma vez o seu nome na lista de aprovados. Conseguira.

E agora, teria forças para levar adiante a sua loucura?

No primeiro dia de aula sentiu remorsos o dia inteiro, esperou que os filhos terminassem o jantar, ao chegar na sala de aula todos já haviam entrado, inclusive o professor.

Depois de um instante de hesitação tentou passar despercebida, abaixou-se feito criança sussurrando desculpas aqui e ali antes de encontrar uma cadeira vaga na última fileira. A sua chegada interrompeu o fio de pensamento do simpático professor Jomard Muniz de Britto. Ele pigarreou várias vezes até a classe inteira sorrir, deixando-a vermelha de vergonha, antes de retomar a aula.

Com o rosto em fogo, a mão trêmula achou a caneta no fundo da bolsa para estrear o caderno novo. Lembrou-se de quantos obstáculos tivera de livrar-se para conseguir o direito de estar ali. Sentia haver chegado à porta do paraíso e não era nenhum sonho.

Quando o primeiro dia de aula chegou ao fim, descobriu o marido parado na porta da sala a esperá-la, o rosto ansioso para saber os detalhes de tudo o que acontecera.


Conceição Pazzola

Olinda, 23 de abril de 2003

PREMONIÇÃO







A mulher é contra-senso de desejos

Tem constante anseio de verdades

No pêndulo de juízos e de vontades

No combate, só dúvidas e pelejas.

Entre o sim e o não ela carrega

Em sua vida rotineira o turbilhão

Sem palavras e nenhuma reação

Segue a trilha do paraíso à comédia

Suporta silente a simplória realidade

Sabe de seu destino, a sina, a vitória

De nascer mulher! Só a maternidade

Resgata a passageira, a maior glória

Enxerga nas filhas o bis de sua trilha

Orbita em torno do mundo conquistado

Aos santos homens protetores de família

Cabe à cada mulher um lugar ao seu lado.


Conceição Pazzola


Olinda, 08/03/02

quinta-feira, 17 de maio de 2007

O SOBRADO


O barulho ensurdecedor das estacas no lado direito de minha casa continua a martelar-me os ouvidos, é tão forte que afugenta o sossego e atrapalha o raciocínio.

Nesse terreno será construído um edifício de doze andares. Em breve ninguém se lembrará que ali existiu a casa de dois andares a que chamávamos de sobrado, onde moraram os nossos melhores amigos, o médico sanitarista Dr. Milton Sobral, a esposa Auxiliadora, dois filhos: Greice Maria que conhecíamos por Mana e seu irmão aprendiz de pianista, inteligente e dedicado, tornou-se um militar graduado como não poderia deixar de ser.

É preciso conter a tristeza que nos invade ao ver o terreno agora tão castigado para que nele seja erguido mais um edifício moderno.

Nele as nossas crianças brincavam, tomavam banho na piscina que foi motivo de muitos sustos e por isso ganhou um gradeado, precaução contra acidentes imprevistos. Tento desligar-me da barulheira infernal para concentrar-me em boas lembranças.

Nas noites de Ano Novo, depois de reunir-se em torno da mesa festiva a família do sobrado convidava os vizinhos para acompanhá-la no primeiro banho do ano na piscina, regado ao champanhe e a petiscos variados. Tornou-se hábito, quando não aparecíamos o Dr. Milton vinha pessoalmente saber o que havia acontecido, até convencer-nos a acompanhá-lo. Auxiliadora nos esperava dentro da piscina e nos recebia de braços abertos.

Fecho os olhos e vejo as crianças a correr e a gritar felizes pelo quintal, quase gêmeas eram as nossas casas, separadas por um muro de pouca altura.

Enquanto as estacas perfuram sem dó nem piedade procuro explicações para o inexplicável desenlace de uma família como aquela. A última notícia a respeito de Mana, a menina que sonhava tornar todo mundo feliz, depois de um casamento desfeito havia se mudado para a Alemanha onde esperava encontrar a chave do sucesso e do amor perfeito.

Por muitos anos, triste e impotente o sobrado resistiu às muitas reformas e agressões de inquilinos. Todos o ocuparam durante pouco tempo, habituamo-nos a ver os caminhões de mudança partirem e janelas e portas novamente trancadas.

Muitas reformas aconteceram no sobrado. Quando o último inquilino o abandonou, os carroceiros vieram em horas discretas para retirar telhas, lâmpadas, e tudo quanto fosse possível carregar.

Pouco a pouco restou só a carcaça de um sobrado abandonado, entregue à própria sorte. Ali se alojaram em recantos convidativos grandes casas de cupins, gulosamente infiltraram-se pelas raízes de árvores no quintal onde existia piscina, há muitos anos soterrada quando ali funcionou uma escola.

Afinal, o que aconteceu com a família de Dr. Milton Sobral?

Apesar de sua ótima localização e aparência sólida o sobrado da piscina vivia desocupado. Quando o maestro Nelson Ferreira o ocupou com a numerosa família pensamos por um instante que afinal ganháramos boa vizinhança, entretanto, ele o ocupou somente por duas semanas, depois, mais uma vez o sobrado foi posto à venda.

Comprado por um empresário de Limoeiro, tornou-se o lazer da família nos fins de semana, até ser habitado por uma senhora, a sogra do empresário. Durante alguns anos tornou-se a guardiã do sobrado enquanto não foi novamente vendido.

Um belo dia, quando a placa de “Vende-se” foi retirada, não demorou veio a mudança e o casal acompanhado por dois filhos, dois cachorros e um cunhado, seguidos pela empregada, senhora idosa, disposta e muito simpática.

Afinal a vida pulsou de verdade dentro daquelas paredes, pois a família viera com disposição para ficar. O sossego matutino foi substituído pelo som de um piano tocado por um menino e pelos gritos de sua geniosa irmã. O cunhado comportava-se discretamente, por ser especial às vezes agia e falava como as crianças.

Foram anos muito felizes.

Naquele verão, eles partiram para um fim de semana na longínqua praia de Carne de Vaca onde pretendiam inaugurar a casa nova. Parecia ser um programa perfeito. No domingo, o nosso amigo médico sanitarista resolveu sair em companhia do sobrinho para pescar, um menino inteligente e bonito a quem muito estimava. Ao ver a criança escorregar e cair dentro d’água, sem pensar duas vezes o Dr. Milton mergulhou para tentar salvá-lo e ambos se afogaram.

Antes do anoitecer chegou a triste notícia. Sem querer acreditar corremos ao cemitério, ali encontramos a desolada viúva à espera dos corpos que em breve teriam de ser velados.

A perda repentina tornou insuportável a vida entre as paredes do sobrado. Ficaram as lembranças felizes e a família partiu para nunca mais voltar.

Dentro de alguns anos, quem passar por essa rua verá o belo edifício de doze andares no mesmo lugar em que existiu o velho sobrado.

Conceição Pazzola. Olinda, 06/5/2007.

O GOSTO DE VIVER


Ainda pode haver esperança genuína

Entre os grandes deste mundo

Em que podes te sentir um menino

Sem preço, nem hora.

Como as fases da lua impassível

No passeio azul e branco de agora

Entre as passageiras nuvens

Deste íntimo novo céu de aurora...

Sentirás no barulho efêmero do vento

E da chuva. Em rumo tranqüilo

A escoar pela terra.

Sem preço, nem hora...

Vai a caminho do mar ou do rio.

Onde se escondem todos os mistérios

De peixes e de estrelas desgarradas

No brilho ímpar do espelho das águas

Refletida está a generosa mãe submersa

Sem preço, nem hora...

Em ti ainda pode haver latente

O desejo secreto e sem limites

Tão simples, ardente, incomparável...

De sentir. E só teu. O gosto de viver.


Desfeitos todos os inúteis adornos

Extintos os teus desejos ambíguos

Antigo acervo de tantas conquistas.

Sobram terrenos carimbos interiores.

Somente ficaram tatuagens invisíveis

Desse teu longo roteiro percorrido

Sem preço, nem hora.

Poderás ter novamente a tua chance

Valioso resgate da simplicidade

Se souberes reter contigo

Nesse instante eternidade

A essência do que te falo, agora.


Conceição Pazzola



Olinda,
27/08/1997.

quarta-feira, 9 de maio de 2007

O PRIMO BASÍLIO, Resumo


“Deve chegar por estes dias a Lisboa, vindo de Bordéus, o Sr. Basílio de Brito, bem conhecido de nossa sociedade. S. Exª., que como é sabido, tinha partido para o Brasil, onde se diz reconstituíra sua fortuna com trabalho honrado, anda viajando pela Europa desde o começo do ano passado. A sua volta à capital é um verdadeiro júbilo para os amigos de S. Exª que são numerosos”.


Escrito em linguagem arcaica, o romance de EÇA DE QUEIROZ relata o papel exercido pela mulher casada na sociedade lisboeta de antigamente, preconceituosa e machista.

Os dias tranqüilos e a vida serena do casamento de Luísa e Jorge terminam com a volta do primo Basílio, o seu primeiro amor. Jorge é engenheiro de minas, sua profissão o obriga a ausentar-se com freqüência apesar de amar quase à idolatria sua esposa. Deixa-a sob os cuidados de fiéis amigos e da criada Juliana, a quem devota profunda gratidão, na mesma proporção que Luísa a odeia.

De personalidade maldosa, interesseira e dissimulada Juliana cresce como personagem durante todo o desenrolar do enredo. Apesar de todos os cuidados adotados para esconder o adultério, pois Luísa não resiste ao charme encantador de seu primo Basílio, pouco a pouco se encontra à mercê de todos os caprichos de Juliana, que a provoca, humilha e chantageia, provocando suspeitas cada vez mais fortes em seu marido.

Cada vez mais apaixonada por Basílio, Luísa cede a todos os caprichos e chantagens da criada e sofre o seu inferno astral, que lhe mina a saúde.

Desconfiado de sua mudança radical em relação à Juliana, Jorge tenta livrar-se da criada. Diante de sua estranha reação, ele procura desvendar o mistério com amigos e vizinhos, porém todos evitam o assunto.

A carta de Basílio é o estopim final para o sofrimento de Luísa. É Jorge quem a recebe, depois de lê-la interroga a criada Juliana que responde com mentiras.

Depois da melancólica morte de Luísa, Jorge perde todo o sentido de viver.

Alheio ao drama do casal, que destruiu ao manter o tórrido romance com a prima Luísa, Basílio volta à Lisboa disposto a procurá-la.

Descobre que ela morreu, sente muita pena de si mesmo por haver perdido a diversão e sai a passear com um velho amigo.

BALADA PARA UMA CRIANÇA


Baixaram as cortinas de teu olhar

Afinal tudo em torno ficou silente

Longe se ouve o vento murmurar

A noite de sono chegará contente

Nenhum ruído restará em torno

Cedo a tua cama está dormente

Abrigo suave em canto morno

Menina boneca, doce inocente.

As lentas horas escoam na janela

Sonolenta e fugaz a chuva noturna

Pronta a velar por teu sono

A orquestra vibra nas telhas

Longa a noite chuvosa repetia.

Mescladas às nuvens relutantes

As matutinas estrelas, centelhas

Seu costumeiro brilho perdiam.

Diante de ti, criança irreverente

Os raios de sol brincam de esconder

Sobre teu rosto sopra brisa ardente

Calidez de uma manhã a te dizer

Os bons sonhos somem depressa

Quando é o novo dia amanhecido

Urge reaver todo o tempo perdido.

Estreitas visões de mil promessas

Intensas elas chegam alvissareiras.

Refletem-se pelos recantos de casa

Os teus vagos desejos passageiros

Só no regaço materno acalentados.


Conceição Pazzola.

Olinda, 26/04/1999.



domingo, 6 de maio de 2007

O BOM LADRÃO


Depois de chover praticamente o dia todo, ao aproximar-se a hora de deixar o trabalho o tempo clareou um pouco. Quase abandonei a sombrinha dentro do armário da minha sala de aula. Pensei melhor, não, pode recomeçar, sei lá. A brisa lá fora me encheu de esperança, enchi os pulmões de ar e caminhei alegre até chegar na esquina, que me levaria ao terminal de ônibus. As poças d’água, o calçamento molhado, tudo concorria para acender a imaginação. Uma tarde assim merece um programa a dois no escurinho de um cinema, ou visitar alguém que não vemos há muito tempo. Quem sabe, um encontro proibido num lugarzinho discreto, aí, seria imprescindível a chuva caindo pela janela para dar-nos impressão de maior aconchego.

Sorri desses pensamentos extravagantes, apressei os passos antes que a noite chegasse por completo. Precisava estar em casa onde os filhos, talvez até o marido estivesse à minha espera.

Dei pouca importância ao adolescente quando passou, esbarrou em mim, apesar de haver espaço suficiente na calçada. Éramos só nós dois a caminhar naquela direção. Lá adiante, o muro do cemitério e mais ninguém.

Quase no fim da rua ele parou de repente e voltou-se. Imaginei tratar-se de algum aluno querendo trocar mais dois dedos de prosa. Esbocei um sorriso amigável, ah, esses adoráveis adolescentes. Todos cabem na mesma fôrma. Gosto de ouvi-los, imaginações férteis a voar muito mais alto do que suas idades.

Vi alguma coisa brilhar e sumir rápido sob o seu casaco de jeans surrado. Escondeu-a desajeitado, sem me encarar gaguejou: Ande, me dê logo o que tem nessa sua bolsa.

Assim, sem mais nem menos. O coração pulsou forte, falhou uma batida. Devo ter empalidecido, tentei segurar o tremor dos lábios, em vão.

Olhei desesperada em direção ao muro do cemitério lá adiante, a sensação de desamparo dominou-me. Como um raio, passou a lembrança de meus filhos a esperar-me em casa.

Nenhuma raiva, só compaixão inundou-me o pensamento. Podia ser um deles. Meu Deus, ainda mal começou a viver, que futuro lhe restava?

Ouvi minha própria voz como se viesse de outra pessoa: Sou tão pobre quanto você – afirmei - Sou professora e não ando com dinheiro, meu filho. Tenho os passes de ônibus, você quer?

Percebi que suas mãos estavam trêmulas, mostrou-se hesitante, nervoso, sem coragem de olhar para mim.

Continuamos a andar cada vez mais depressa, e eu não parava de falar: Você me pegou de surpresa, quem sabe, se estiver aqui amanhã, trago algum trocado e lhe dou? Já viu, esse é o meu caminho, não viu?

Perdera por completo o controle, estava mais para um disco quebrado de antiga radiola de ficha. Nunca poderia imaginar que viveria situação tão ridícula, ao mesmo tempo sem saída.

Chegamos na outra esquina da Rua do Pombal, lado a lado como se fôssemos companheiros de longa data. Ou mãe e filho a passear na tarde cinzenta. A qualquer instante poderia ser o meu fim, antes de a chuva recomeçar estaria fulminada numa daquelas poças d’água.

Nem lembrei mais por que me encontrava ali, longe de casa, desamparada, vivenciando aquele pesadelo. O mundo inteiro se tornara nublado.

Súbito, como de um país distante chegou-me ao ouvido a voz do assaltante. Primeiro ele tateou nervosamente o objeto faiscante, ocultou-o melhor sob o casaco surrado de jeans e disse: Tem gente mais pobre do que eu. Vá, vá logo, vá embora!

Acelerei o passo, agarrei a minha sombrinha como se fosse uma tábua de salvação sem olhar para trás ganhei distância. Só então senti as pernas tremerem sem parar. O coração ainda acelerado, pensei: Meu Deus, como é triste ver um menino virar ladrão...

Somente quando já estava bem acomodada dentro do ônibus soltei um longo suspiro aliviado. Quem haveria de acreditar?

Conceição Pazzola

Olinda, 6 de maio de 2007.

VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA



Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconseqüente

Que Joana a louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar mãe-d’água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De evitar a concepção

Tem telefone automático

Tem alcalóide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Pra gente namorar

E quando eu estiver mais triste

Mais triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

- Lá sou amigo do rei –

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.

Manuel Bandeira

Estrela da Vida Inteira, Nova Edição

sexta-feira, 4 de maio de 2007

PERDIDA

Súbita insegurança a fez puxar a campainha para descer. A estrada à sua frente parecia não ter mais fim. Olhou amedrontada a imensidão vazia, só a íngreme subida de barro cercada de mato com cheiro de umidade. Nada de casas, de gente, de escola, muito menos. Onde estava?

Não podia entrar em pânico, haveria de descobrir. Sem saber direito o que fazia começou a subir pelo aclive, atenta às folhas que pareciam ter vida e voz, o coração cada vez mais descompassado. Quase teve uma síncope ao deparar-se com o homem parado lá no alto a observá-la. Os olhos pareciam faiscar na semi-escuridão do anoitecer.

Um zumbido incômodo impediu-a de pensar, a garganta cada vez mais apertada rezou fervorosamente: Meu Deus, dê-me coragem...

Difícil foi controlar a tremedeira: Moço, por favor, pode me ajudar? Acho que tomei o ônibus errado.

A própria voz pareceu soar diferente, distante...

Continuou desfiando mentalmente uma prece: “Minha mãezinha, me livre desse estranho, faça com que não seja um delinqüente.”

- Olhe, aqui não existe outra coisa senão a minha palhoça lá em riba – respondeu o homem. Indicou a estrada - A senhora espere pelo próximo ônibus, tenho de ir para minha casa agorinha mesmo.

Segurou o suspiro de alívio, tomara que o estranho não desista de ir embora e volte ao ouvir as pancadas desordenadas de seu coração que parecia querer pular garganta afora, sair pela boca. Como podia ser tão covarde? O estranho sumira por encanto no meio do mato, deixara-a sozinha naquela noite escura. Respirou com força, determinou-se a não olhar para trás.

Surpreendeu-se quase a correr à margem da estrada, o ininterrupto vai-e-vem do trânsito a persegui-la.

Como pudera ser tão tola, pensou ao avistar as primeiras casas e ouvir vozes. Num gesto impensado puxara o cordão da campainha antes da hora.

Diante do portão por onde entravam os primeiros alunos para o turno da noite, invadida por infinito prazer abriu o caderno para conferir o endereço que anotara em sala de aula.

Escola Argentina Castelo Branco. Finalmente chegara ao local onde deveria cumprir o estágio com a sua equipe do último ano da faculdade. Por sinal, nem viv’alma.

Acompanhou maquinalmente os estudantes que pareciam ignorá-la, embora já houvesse decidido. Aquela seria a última vez, nunca mais poria os pés ali.

Em poucos minutos estava no interior de um ônibus rumo ao centro da cidade onde morava. A única passageira. Intenso mal-estar o trajeto inteiro, a cada parada, um susto.

Conceição Pazzola

Olinda, 4 de maio de 2007.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

TALVEZ


Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,

E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...

Pablo Neruda

O RIO



Mesmo antes de um rio cair no oceano
Ele treme de medo
Olha para trás, para toda a jornada:
Os cumes
As montanhas
O longo caminho sinuoso através das florestas
Através dos povoados
E vê à sua frente um oceano tão vasto
Que entrar nele nada mais é
Do que desaparecer para sempre
Mas não há outra maneira
O rio não pode voltar
Voltar é impossível na existência
Você pode apenas ir para a frente
O rio precisa se arriscar e entrar no oceano
E somente quando ele entra no oceano
É que o medo desaparece
Porque apenas então o rio saberá
Que não se trata de desaparecer no oceano
Mas tornar-se oceano.

(Autor Anônimo)