sábado, 28 de julho de 2007

A SAGA DE (UMA) MORENA PORRALÔCA


Além desse nome invulgar ela não nasceu com a face virada pra lua. Fruto de um rolo entre Otelo, o domador de um leão chamado Garibaldo e Desdêmona, a mulher barbada sempre recolhida à sua tenda desde os primeiros sonhos com barbeadores elétricos e rios de sangue que escorrem nas ruas e cidades. Antes que Morena trocasse todos os dentes de leite a família Pôrraloca desintegrou-se. Cansado de levar chicotadas e repetidos foras de Desdêmona por quem nutria secreta paixão, o antes submisso leão Garibaldo enfureceu-se a ponto de engolir Otelo de uma vez sem mastigá-lo. Desse restaram o chicote e o paletó de domador bordado a ouro por Desdêmona, para contar sua história.

Desdêmona nada pôde fazer. Depois do fato consumado limitou-se a tentar recolher o paletó, no que foi impedida pelo leão. Quando a noite chegou, achou-a dedicada à espinhosa tarefa de manejar o barbeador do finado recém engolido enquanto maquinava planos para chutar o pau da barraca, melhor dizendo, do circo. Antes que o sol raiasse por completo havia desistido de tão espinhosa missão, rabiscou um bilhete de despedida, despejou sobre ele o resto de um perfume preferido por Otelo, entregou a uma das patas dianteiras de Garibaldo novamente submisso. Desde que estancara o zumbido do barbeador ligado, o leão esperava pelo resultado, ao vê-la com a metade do rosto escanhoado sacudiu a juba de contentamento, mas, logo voltou a ficar macambúzio. O bilhete não trazia o seu nome.

O caminho estava livre. Por que, Desdêmona? Perguntou-se. Porém, na vida real os bichos não falam. Teve de engolir em seco e voltar ao recanto mais escuro da jaula. Com um gesto desdenhoso ela virou-lhe as costas e sumiu sem mostrar nenhum sinal de arrependimento.

Quando Morena acordou quase ao meio-dia que ninguém é de ferro depois de uma noite tão cheia de novidades, a perda de seu pai, o barulho no quarto de sua mãe a noite toda...

Mesmo com sua barba pela metade Desdêmona embarcou no ônibus com o bilhete só de ida adquirido no guichê da empresa Progresso.

Morena sentiu o ambiente carregado ao ver Garibaldo palitando os dentes atrás das grades de sua jaula com a cara mais inocente desse mundo. Ainda ruminava Otelo, e mal a avistou, esticou a pata com displicência leonina para lhe entregar o bilhete de sua mãe, agora fugitiva. Continha somente as cinco letras que choram num momento de dor: Adeus!

Enfim, reconheceu: estava só naquele circo falido, rodeada de negros pêlos da metade da barba de Desdêmona por todos os lados, até em cima da velha lona que cobria o circo. Compreendeu que não lhe restava outra coisa a fazer senão juntar as tralhas para ganhar o mundo. Como ninguém é perfeito, enquanto trocava de roupa ligou a radiola de ficha, ouviu e cantarolou com Miltinho a música preferida por seu pai Otelo: cara de palhaço, roupa de palhaço...

Por falar nisso, Morena vestiu também o nariz de bola vermelha, procurou e achou a chave que abria a jaula do leão. Antes de soltá-lo, a muito custo fez o leão prometer que não olharia para trás e o mandou catar coquinhos na floresta.

O leão obedeceu embora um pouco relutante por que nunca ouvira falar em nenhuma floresta, pegou sua reta sem olhar para trás.

Que fim levou Garibaldo? Ninguém sabe, ninguém viu...

Atraídos pelo fogaréu no meio do mato, os bombeiros chegaram quando só havia cinzas no lugar onde o circo fora armado. Ali, acolá, alguns poucos pêlos da espessa barba de Desdêmona para contar a história.

Sentada à beira do caminho Morena via os carros passarem por ela. Nenhum se mostrava disposto a dar-lhe carona, achou a solução quando o chefe dos bombeiros subiu na boléia do carrão de um vermelho berrante. Com sirena e tudo lá se foi Morena Porralôca vestida de palhaço sob a proteção do Corpo de Bombeiros até o cais do porto.

Apesar de pouco iluminado, ela enxergou o Menino Jesus de Chico Buarque perambulando no cais, sem lenço e sem documento atrás de uma banca de revista onde ninguém lê tanta notícia. Como já era tarde estavam todas fechadas, de modo que a sorte dessa vez sorriu para Morena. O Menino Jesus conhecia de cabo a rabo o local onde nascera. Conseguiu um tonel de querosene vazio no porão do primeiro navio pronto a zarpar, eles jogaram par ou ímpar, ela ganhou. Despediu-se de seu novo amigo, pronta para o que desse ou viesse.

O capitão sempre de prontidão logo desconfiou do tonel barulhento por conta dos roncos indiscretos do estômago vazio de Morena, mas, para surpresa geral dela mesma e de toda tripulação foi magnânimo. Deixou-a pernoitar em sua cabine em troca de pequenas gentilezas durante toda a viagem, no que ela não se fez de rogada.

Quase um ano depois, Morena Porralôca sentia-se uma nova mulher, apesar da pouca idade conquistara o carinho da turma toda do navio cargueiro que parava em qualquer porto onde os marinheiros precisavam se divertir. Morena aprendeu a viver.

Quando acabou a atracação do navio no porto do Recife ela vestiu a camisa listrada do embarcadiço que convencera o capitão a deixá-la dar uma volta pela cidade em sua alegre companhia. Emborcou de uma só vez o último copo de chá de capim santo misturado com a caninha parati, mastigou todas as torradas do pratinho de plástico presenteado por seu amigo gracioso antes de pular na escada de corda de dois em dois degraus. Cantarolava baixinho: Recife, cidade lendária de Capiba para dar sorte e sem que soubesse, havia chegado ao famoso Marco Zero, orgulho de todo recifense que se preze.

Na primeira bobeada driblou o embarcadiço muito indeciso entre uma boina pink ou o modelador de sobrancelhas e saiu por aí, pronta a conhecer cada detalhe da tão falada Veneza brasileira. Poucos passos adiantes quase derrubou a Rebordosa, que estava paralisada, hipnotizada diante da escultura de Brennand. Gritinho vai, gritinho vem, concluíram haver um remoto grau de parentesco a uni-las, tantas eram as coincidências de gostos e atitudes entre as duas.

Aceitaram o conselho de um tatuador da ponte da Boa Vista e foram atrás de catar caranguejos na maré baixa do rio Beberibe, quase na bacia do Pina sem parar de falar nem por um segundo. Foram às vias de fato com os verdadeiros catadores profissionais por causa de invasão de território e uns caçuás roubados, o insucesso não chegou a desanimá-las.

Comemoraram a meia dúzia arrebanhada de caranguejos para o café da manhã. Para a alegria ser completa faltavam importantes detalhes: um fogão, uma panela, uma cama onde dormir...

Cobertas de lama Morena e Rebordosa decidiram encarar um chuveirão em Boa Viagem, o próximo passo seria convencer ao chapinha Neguinho Fulorado a emprestar seu cafofo numa invasão da antiga Domingos Ferreira para descanso maneiroso das ladies. Diante do forte odor que delas emanava, resíduo de maré meio semelhante à fragrância francesa vencida, o ardiloso tocador de zabumba nos maracatus não sentiu muita firmeza na proposta. Saiu-se com essa: Só quando a maré encher. Quem sabe?

Nessa hora Morena Porralôca perdeu a calma e foi assaltada por seu primeiro pensamento malsão: ah, que saudade de Garibaldo... Nessas horas difíceis ninguém substitui um amigo leão.

E assim ocorreu o nascimento da nova poeta recifense.


Conceição Pazzola

28/07/2007

sexta-feira, 27 de julho de 2007

SUMIU



A minha vida nada mais é

Somente o castelo de areia

Efêmera, ao sabor da maré

Basta um sopro na candeia

Antes, só eu, o mar, o céu

Como será o meu castelo

Penso nele muito bonito

Forte, sólido, igual rocha

Longe de qualquer ameaça

Com areia faço argamassa

Moldo, desfaço sem pressa

Enfim o longo dia termina

No castelo tem um jardim

As ondas pedem seu lugar

E o mar avança sobre mim

Em breve desisto de lutar

Também o castelo tomba

A luta insana é crescente

Dele? Nenhuma sombra

Foi tragado de repente

Para onde foi o castelo

Nem lembrança restou

De novo só, perdi o elo

Ele sumiu, desmoronou.


Conceição Pazzola

27/7/2007

segunda-feira, 23 de julho de 2007

PESADELO


L


Cheguei nesse lugar estranho

Sinto muito frio e tenho medo

Não há gente não há sons

A névoa cobriu todas as coisas

Não sei como sair daqui

Meu grito ninguém responde

Quero acordar bem depressa

Sei que nunca estive antes

Nesse escuro vejo sombras

Quero o colo de minha mãe

Estou só, abandonada

Sei que não é ilha deserta

O silêncio me cerca sem dó

Onde posso achar alguém

Tão perdido como eu

Onde estão as minhas pernas

Que lugar tenebroso e triste

O medo não me deixa dormir

Alguém me ampara no colo

Sou uma menina travessa

Tenho de fugir do perigo

Alguém sussurra meu nome

Flutuo como uma pena

Sinto que não vou resistir

Venha logo mãezinha

Antes que eu adormeça.


Conceição Pazzola

21/7/2007

Imagem: David Delamare


domingo, 22 de julho de 2007

O FIM DO GATO GATUNO


A tarde deixou de ser igual a tantas outras. O irresistível cheiro o atraiu para dentro da cozinha. A boca encheu-se de saliva.

Com a sua natural agilidade felina escorregou silencioso sobre o fogão: o caminho estava livre. Ninguém vigiava o apetitoso prato de sardinhas fritas que pareciam implorar para serem devoradas.

Vozes no interior da casa o tranqüilizaram.

Terminada a refeição lambeu os próprios bigodes: deliciosas!

Pulou de novo sobre o muro de onde viera e recomeçou a cantilena romanesca. Rodeada pelas estrelas, a lua se mostrava em todo esplendor.

Logo as companheiras de noitada atenderiam ao seu irresistível chamado.

Soubesse o que o esperava...

Novo entardecer e último dia de lua cheia. Intrigada com o sumiço de seu gato que não via desde a noite anterior, a mulher resolveu procurá-lo.

Após outra conferida por todos recantos prováveis, debruçada no muro avistou o vizinho, um senhor solitário, já entrado nos anos.

- Hei, Seu Agostinho, muito boa-noite!

O homem parou de molhar as plantinhas, ergueu o olhar curioso em sua direção:

- B’as noites. Como vai a senhora?

Foi direto ao assunto, a voz cheia de aflição:

- Por um acaso, o senhor viu o meu bichano por aí?

O vizinho largou o aguador no chão, sorriu enigmático e respondeu:

- Vi não, senhora. E passe muito bem.

Apesar da idade, sumiu rapidamente no interior de sua casa. Que sujeito estranho.

Sentiu um súbito arrepio percorrer-lhe a espinha, o riso do velho pareceu-lhe o prenúncio do mal.

Antes que a noite chegasse por completo, um moleque bateu palmas no seu portão. Abriu o saco encontrado no monturo e soltou um grito diante da visão medonha.

Todo retesado, os dentes à mostra o gato parecia sorridente.

Veneno fulminante.


Conceição Pazzola

Olinda, 22/7/2007