terça-feira, 8 de abril de 2008

ATO DE CARIDADE



Acabara de anoitecer, Aninha olhou mais uma vez pela janela, o vulto continuava sob a luz bruxuleante do poste apesar da chuva fininha que caía intermitente desde o começo da tarde e parecia disposto a não arredar o pé.

Condoída, apesar de conhecer muito bem o temperamento de sua irmã que continuava a se movimentar pela casa como se nada houvesse acontecido, arriscou:

- Tens certeza do que estás fazendo? O coitado continua lá, tomara que não fique resfriado.

A resposta veio em tom seco:

- Deixa que espere. E vai cuidar de tua vida.

De certa forma sentia-se responsável, Tiago entrara na vida de Estela por sua causa, ela os apresentara. Alguma razão haveria para tamanha frieza, ainda ontem os dois arrulhavam como pombinhos no sofá da sala. Tiago não era um homem de se jogar fora, apesar de sua pouca instrução era bonito e muito esforçado.

Tentou distrair-se, para piorar as coisas a chuva engrossara. Quando viu a irmã entrar no quarto para dormir retirou o guarda-chuva do móvel antigo, desses que não existem mais atrás das portas de entrada das casas, disposta a socorrer o pobre rapaz. Na rua quase perdeu o equilíbrio com o impacto da ventania, lutou para o guarda-chuva não virar do avesso, praguejou consigo mesma, por que não fora cuidar de sua vida como lhe fora sugerido? Precisava voltar o quanto antes para o aconchego morno de onde nunca deveria ter saído e gritou a plenos pulmões:

- O que você pensa que está fazendo, seu bobalhão? Trate de correr para cá ou vá embora antes que me arrependa desse papel ridículo de boa samaritana...

Levantou o guarda-chuva para enxergar melhor, sob o poste não havia mais ninguém; somente o eco de sua voz ressoou na noite chuvosa.

Para desespero de Estela, entre um espirro e outro Aninha não parou de repetir até o sono silenciá-la:

- Ah, Estela, você perdeu mais um partidão.


Conceição Pazzola

Março/2008.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

PASSEIO
















Primeiro nascer do sol de 2008

Agora que a longa chuva deu trégua

Sem borbulho nas calhas de telhados

Vejo entre nuvens o colorido arrebol

Quero passear em calçadas molhadas



Vou ao encontro de outras meninas

Tão felizes e descalças como eu sou.



O longo temporal e a forte ventania

Derrubou sob árvores gostosos oitis

Em breve teremos sorrisos amarelos

Trocaremos nossos alegres segredos


Depois de risadas e suspiros reprimidos

Impacientes, envoltas pelo brilho do sol

Em grupos ruidosos pedalamos bicicletas

Seguidas de perto por olhares preocupados


Daqueles que serão um dia nossos maridos

De tanto pedalar ao sabor da ventania

Teremos desmanchados os cabelos

Inflamados em nossos peitos os desejos


Inconfessos verdes anos de puberdade

Sufocada sob as pregas do vestido

Aflorada em rimas de cantigas e solfejos

Repartida entre as amigas sem juízo


No regresso às nossas casas ao fim do dia

Afogueadas por tantas risadas e euforia

Ainda unimos os nossos assobios irritantes


Ao canto de cigarras, sabiás e bem-te-vis

Entre os galhos da árvore, vigilantes

Saúdam os pequenos comedores de oitis.


Maria da Conceição Cardim Pazzola.

Olinda, 13/7/02 (09:20)